março 27, 2008

Manhã



La Danaide- Auguste Rodin


Estou
e num breve instante
sinto tudo
sinto-me tudo

Deito-me no meu corpo
e despeço-me de mim
para me encontrar
no próximo olhar

Ausento-me da morte
não quero nada
eu sou tudo
respiro-me até à exaustão

Nada me alimenta
porque sou feito de todas as coisas
e adormeço onde tombam a luz e a poeira

A vida (ensinaram-me assim)
deve ser bebida
quando os lábios estiverem já mortos

Educadamente mortos



Mia Couto

março 26, 2008

Cronopio Convocado



Dizer Escuro


Tal Orfeu toco

nas cordas da vida a morte

e na beleza da terra

e dos teus olhos que mandam no céu,

só sei dizer escuro.



Não esqueças, que também tu, de repente,

naquela manhã, com a cama

ainda molhada de orvalho e o cravo

a dormir no coração,

viste o rio escuro

a passar por ti.



Com a corda silêncio

tensa na onda de sangue,

agarro o teu coração.

Tuas madeixas mudavam,

tornavam-se cabelos de sombra da noite,

flocos negros de treva

nevavam no teu rosto.



E eu não sou tua pertença.

Ambos nos queixamos já.



Mas tal Orfeu sei

na borda da morte a vida,

e azula-se-me

o teu olhar para sempre fechado.

Ingeborg Bachmann


25 de Junho de 1926, Klagenfurt, Austria - 17 de Outubro, 1973 Roma, Itália

Escritora, poeta e ensaísta austríaca.
Foi membro do Gruppe 47 - Grupo 47 do pós-guerra. A linguagem poética como possibilidade de iluminação, contra os horrores do mundo.
Com este ar blasé de estrela de cinema europeu, nem de longe, Ingeborg, parecia a profunda criatura que era, envolta em lembranças de atritos com o pai (fato que remete a Kafka na sua "Carta Ao Pai"), ao aspecto político-denunciador da sua obra, e aos temores íntimos que ensombreciam por vezes seu olhar.
Ingeborg por ironia do destino, ou como se queira denominar a força que torce os caminhos projetados, teve na sua morte por queimaduras, quando caiu com um cigarro aceso no banheiro e desmaiou, o desafio da dúvida. Pensaram os amigos: "Como?" Sim, ela poderia ter se acordado com a dor das queimaduras, não estivesse com alguns calmantes e alcool em sua corrente vital.
Assim é que nesta, como em tantas outras que passaram ou passarão, a Morte, a Loucura e sua confraria, aproxima-se assustadoramente da Arte.

PS: Propositalmente, escolhi um poema de amor para ilustração, pois é o lado menos divulgado da poeta

dos Ritos


a mansidão
as Razões
o Tempo
o meu silêncio
tua Tristeza
a dor de não saber
se é, ou não
o que gostaria.
a Madrugada acordada
o vinho, o cigarro, a pílula para acalmar o coração
que grita
Me Ama!
que sofre
às vezes calado,
noutras falando baixinho
o Telefone que toca
impropriedade da Hora
teu cansaço
meus abraços
Mornos, quentes
sempre tão doces abraços
a Lágrima que corre sem me dizer pra onde
o choro compartilhado através do Oceano de Tristezas
um dia
um mês
quantos anos a gente se conhece?
Tempo
de não saber se é o que quero
ou se espero
a nova volta da Vida
no Carrossel de cavalos mancos
e fadas enlouquecidas
Tempo
de ter que dizer
se me quer ou não
nesta Vida
ou se morro agora
pra Renascer em
olhos que Te
toquem
a Alma
que não é de Ninguém,
que Te mexam
as fibras do Coração
congelado
por Quem?

albanegromonte

março 25, 2008

A Morte de Lindóia (Canto IV)




Este lugar delicioso, e triste,

Cansada de viver, tinha escolhido

Para morrer a mísera Lindóia.

Lá reclinada, como que dormia,

Na branda relva, e nas mimosas flores,

Tinha a face na mão, e a mão no tronco

De um fúnebre cipreste, que espalhava

Melancólica sombra. Mais de perto

Descobrem que se enrola no seu corpo

Verde serpente, e lhe passeia, e cinge

Pescoço e braços, e lhe lambe o seio.

Fogem de a ver assim sobressaltados,

E param cheios de temor ao longe;

E nem se atrevem a chamá-la, e temem

Que desperte assustada, e irrite o monstro,

E fuja, e apresse no fugir a morte.

Porém o destro Caitutu, que treme

Do perigo da irmã, sem mais demora

Dobrou as pontas do arco, e quis três vezes

Soltar o tiro, e vacilou três vezes

Entre a ira e o temor. Enfim sacode

O arco, e faz voar a aguda seta,

Que toca o peito de Lindóia, e fere

A serpente na testa, e a boca, e os dentes

Deixou cravados no vizinho tronco.

Açouta o campo co'a ligeira cauda

O irado monstro, e em tortuosos giros

Se enrosca no cipreste, e verte envolto

Em negro sangue o lívido veneno.

Leva nos braços a infeliz Lindóia

O desgraçado irmão, que ao despertá-la

Conhece, com que dor! no frio rosto

Os sinais do veneno, e vê ferido

Pelo dente sutil o brando peito.

Os olhos, em que Amor reinava, um dia,

Cheios de morte; e muda aquela língua,

Que ao surdo vento, e aos ecos tantas vezes

Contou a larga história de seus males.

Nos olhos Caitutu não sofre o pranto,

E rompe em profundíssimos suspiros,

Lendo na testa da fronteira gruta

De sua mão já trêmula gravado

O alheio crime, e a voluntária morte.

E por todas as partes repetido

O suspirado nome de Cacambo.

Inda conserva o pálido semblante

Um não sei quê de magoado, e triste,

Que os corações mais duros enternece.

Tanto era bela no seu rosto a morte!

Basílio da Gama

março 21, 2008

Taças de tinto, E...




Pois sim.
Gosto de ti, e sei.
Armadura nenhuma será capaz de deter este meu imenso coração que se enche de coisas e grita, ou berra, já nem sei, o amor todo que carrega em si.
E uma taça de vinho se revela última, quando o acorde dissonante do meu violão explode em sinais de pare! É agora ou nunca.
Senão haverá:
Focas amestradas a saltar em bolas aritméticas, tigres de bengala nem tão velhos assim a dizer: estamos aqui, sábios orientais em túnicas de seda, em dizeres morféticos e durmo!
Ah, mas nada existe além desta torrente de amor que me invade-arde-consome fome de tudo que sempre quis ter e nunca!
Olhos cor de não-sei-quê, boca que indica crueldade, mas só instila ternura, peito com pêlos. Todos os pêlos onde quis aventurar minha mão e nunca pude.
Agora tenho, e sei, meu.
Apenas isso, e.
Minha voz que se anuncia pelas máquinas absortas em teu sonho e saem janela a fora cantando todo este amor que finda em nós.
Agora que te encontrei, sou tua.
E nada me arrastará do vendaval que é esta vida que passa tão de repente...
E a gente nem sente
Que foi, passou.
E a ruga nos lábios se vê na foto, no início da curva dos fios de prata que advrtem: Calma.
Eu não.
Serena e sempre te busco nas noites e madrugadas infindas.
Te busco embaixo dos lençóis e sussurro em grito que se esvai em lástima. Ou lágrima. Já nem sei diferença que. Se há.
"Toma-me. Sou tua como quando era no início e te dizer poema ou canção, era urrar e mostrar pelo eriçamento de pêlos e tudo o mais, que sim, sou tua.
E para sempre hei de ser.

albanegromonte

março 20, 2008

Dois Cronopios Para Um




Dom Quixote, pintura sobre
um bloco de madeira, de Armando Romanelli






Visitando os cronopios amigos, eis que reencontro no Non Liquet ( um escrito de Cervantes/Quixote(que rendeu o post anterior)
Veio-me à memória a primeira leitura desta aventura ímpar, que fiz por volta dos 10 anos.
Invadiu-me uma vontade de trazer um pouco desta figura que vive em cada um de nós, feito partícula do cosmos... (uma pesquisa em algum lugar, em algum tempo, diz que este livro é o segundo mais lido do mundo... ficando atrás do best-seller de sempre, A Bíblia).
Então convidei dois cronopios para dele falar: Carlos e Luís.
Os dois textos de Drummond vêm de "Quixote e Sancho, de Portinari", uma série de 21 poemas escritos com base em igual número de desenhos do pintor, criados em 1956. Os poemas apareceram no livro de Drummond Impurezas do Branco, de 1973, mas haviam saído antes
numa edição fora de comércio, junto com trechos de Cervantes e os desenhos de Portinari.
O soneto de Jorge Luis Borges, "Sueña Alonso Quijano",tem, mais ou menos, o mesmo assunto do poema XXI, de Drummond. O mestre argentino, como sempre, oculta nos versos um achado brilhante: "Foi o fidalgo um sonho de Cervantes / E Dom Quixote um sonho do fidalgo." Brilhante, não é mesmo?
Por fim, este post é dedicado a Djabal, pela alta voltagem que imprimiu em minha alma de cronopio, com seus comentários neste humilde blog; e pelo sempre espetáculo que é o seu Non Liquet (www.havesometea.net/NonLiquet/)




XI / DISQUISIÇÃO NA INSÔNIA

Que é loucura: ser cavaleiro andante
ou segui-lo como escudeiro?
De nós dois, quem o louco verdadeiro?
O que, acordado, sonha doidamente?
O que, mesmo vendado,
vê o real e segue o sonho
de um doido pelas bruxas embruxado?
Eis-me, talvez, o único maluco,
e me sabendo tal, sem grão de siso,
sou — que doideira — um louco de juízo.


XXI / ANTEFINAL NOTURNO

Dorme, Alonso Quejana.
Pelejaste mais do que a peleja
(e perdeste).
Amaste mais do que amor se deixa amar.
O ímpeto
o relento
a desmesura
fábulas que davam rumo ao sem-rumo
de tua vida levada a tapa
e a coice d'armas,
de que valeu o tudo desse nada?
Vilões discutem e brigam de braço
enquanto dormes.
Neutras estátuas de alimárias velam
a areia escura de teu sono
despido de todo encantamento.
Dorme, Alonso, andante
petrificado
cavaleiro-desengano.



Carlos Drummond de Andrade




SONHA ALONSO QUIJANO



Desperta aquele homem de um indistinto
Sonho de alfanjes e de campo chão,
Toca de leve a barba com a mão
Duvidando se está ferido ou extinto.
Não irão persegui-lo os feiticeiros
Que juraram seu mal por sob a lua?
Nada. O frio apenas. Apenas sua
Amargura nos anos derradeiros.
Foi o fidalgo um sonho de Cervantes
E Dom Quixote um sonho do fidalgo.
O duplo sonho os confunde e algo
Está ocorrendo que ocorreu muito antes.
Quijano dorme e sonha. Uma batalha:
Os mares de Lepanto e a metralha.

Jorge Luís Borges

Cervantes É Cronopio



Portinari, Dom Quixote e Sancho Pança Saindo para Suas Aventuras (1956). Lápis de cor sobre cartão.



- Soy quien puede más que Amor,

y es Amor el que me guía;

soy de la estirpe mejor

que el cielo en la tierra cría,

más conocida y mayor.

Soy el Interés, en quien

pocos suelen obrar bien,

y obrar sin mí es gran milagro;

y cual soy te me consagro,

por siempre jamás, amén.



Miguel de Cervantes Saavedra in Don Quijote de La Mancha,

março 19, 2008

Cronopio Convocado



Portrait de Christina Rossetti, pintada por seu irmão Dante Gabriel Rossetti

Poetisa inglesa, Christina Georgina Rossetti nasceu a 5 de Dezembro de 1830, na cidade de Londres.
Em 1842 Christina foi presenteada com a publicação dos seus primeiros versos pelo avô, proprietário de uma tipografia. Utilizando o pseudónimo Ellen Alleyne, contribuiu também com alguns dos seus poemas para uma revista pertencente ao movimento artístico designado como Pré-Rafaelita, e que o seu irmão William Michael ajudara a fundar. O movimento Pré-Rafaelita era essencialmente estético e protestava contra o uso exagerado da técnica se não fosse acompanhado de inspiração, prescrevendo a arte medieval antes de Rafael como modelo. Um outro dos seus quatro irmãos, o célebre pintor e também poeta Dante Gabriel Rossetti fez-lhe em 1849 um retrato a óleo a que chamou The Girlhood of Mary Virgin , 'A Meninice da Virgem Maria'.

Em 1862 publicou a sua obra mais conhecida, Goblin Market and Other Poems , coletânea bem ilustrativa do seu estilo melódico mas com arritmia, e cujo poema titular descreve o modo como duas irmãs interagem na descoberta da tentação. Seguiram-se Prince´s Progress and Other Poems (1866) e um livro de contos, Commonpalce and Other Short Stories (1870), entre outras obras, algumas de inspiração religiosa.
Em meados da década de 80 tornou-se praticamente inválida, devido a complicações na glândula tiróide, o que a impediu de seguir o ofício da sua mãe e vir a ser governanta. Recolhida em casa, continuou a escrever, publicando coletâneas de poesia como The Face of The Deep (1892) e Verses (1893).

Tida como a mais provável sucessora de Lord Alfred Tennyson como Poeta da Corte Real Britânica, não chegou a poder ser honrada com o cargo por falecimento, vítima de cancro, a 29 de Dezembro de 1894.


Apesar de publicar alguns de seus primeiros poemas em Germ (1850), uma revista pré-rafaelista, e posar como modelo para seu irmão, Dante Gabriel, e outros pintores pre-rafaelistas, ela não pertenceu a este movimento. Grande parte de sua obra era caráter religioso. Os temas da renúncia ao amor terreno e a preocupação com a morte se esboçam em alguns poemas. A obra de Cristina Rossetti abarca uma ampla variedade de estilos e formas.



Num Lugar Qualquer



Num lugar qualquer
Num lugar qualquer decerto deve haver
A face nunca vista, a voz nunca ouvida
O coração que ainda nunca, nunca ainda, pobre de mim!
Respondeu à minha chamada.

Num lugar quqlquer, talvez perto ou longe,
Para além da terra e do mar, bem longe da vista
Para além da lua errante, para lá da estrela
Que a segue noite após noite.

Num lugar qualquer, talvez longe ou perto,
Com apenas um muro, uma sebe a escondê-lo,
Ou apenas as últimas folhas do ano a morrer
Caídas sobre um relvado enverdecido.

Remember



Recorda-te de mim quando eu embora
For para o chão silente e desolado;
Quando eu não te tiver mais ao meu lado
E sombra vã chorar por quem me chora.

Quando mais não puderes, hora a hora,
Falar-me no futuro que hás sonhado,
Ah de mim te recorda e do passado,
Delícia do presente por agora.

No entanto, se algum dia me olvidares
E depois te lembrares novamente,
Não chores: que se em meio aos meus pesares

Um resto houver do afecto que em mim viste,
-Melhor é me esqueceres, mas contente,
Que me lembrares e ficares triste.

(Tradução Manuel Bandeira, in Rosa do Mundo)


Christina Georgina Rossetti

Escrito Antigo de Cronopio




Eu era jovem, muito jovem...
Sonhava com escrevinhações que um dia se largariam mundo a fora, palavras minhas, ajuntadas em versos horizontais sem pontuação e sem maiúsculas, que foi o jeito que sempre gostei de fazer.
Éramos todos jovens.
E tentamos fazer, num tempo em que ainda não existiam blogs, uma chamada revista eletrônica: Andarilhos Das Letras...
De vez em quando o Ig permite o acesso ao sonho que se converteu em separações, dsitanciamentos, alumbramentos por outras plagas.
Hoje, consegui arrancar este texto de lá.
Era o editorial da minha edição da "revista". O mote, era um verso do poeta conterrâneo, Manuel Bandeira.
Quem ficar curioso, pode tentar o acesso...

http://www.andarilhos.hpg.ig.com.br/inicio.htm





A Estrela de Bandeira

"Motes sugeridos inspirando, resgatando, rodeando as telas/papéis, movimentando dedos/tintas, fortalecendo razões, expondo sentimentos, reestruturando sonhos, idéias que vão/vêm no balanço duplo e delicado das comunicações neuronais com as batidas do coração vibrando no peito. Gente que parte/fica, no temor de não reconhecer que o sonho se realizou, sim. Amor visceral que explode em verso/prosa, em todas as formas que a arte pode/deve ser expressa. Instantâneo momento que vira fotografia de toda uma vida parida de luz. Murros dados em ponta de estrela que se indaga porque tão cortante/brilhante. Joelhos dobrados, cativos de um passado de gesso solto nos bytes mundo a afora. Coincidência do dia consagrado, a ela, Poesia, inspirando mais e mais o desfraldar da bandeira. Poeta resgatado do fundo do baú, entregue pelas mãos da filha in memoriam, buscando o reconhecimento e renascendo por estas páginas que os dedos não passam, com o sorriso aberto de quem nem imaginava um dia ter esta configuração de andarilho. Estrelas rasantes, alegres/tristes, dependuradas nos céus das bocas todas que falam tudo sem voz, estrela farol do dia escondida sob a casca do homem-criação, estrela que se pergunta o porquê de ser eterna... Letra de poeta-homenagem a si mesmo, que diz lamentar a vida que poderia ter sido, e que foi, se voltarmos os olhos para o seu verso complemento: Poesia minha vida verdadeira. Imagens da cidade celebrada quase fora da realidade, em preto e branco que são as cores da saudade. E como ser andarilho consiste em percorrer estradas inventadas ou não, relata-se encontro entre bambus, flores e gentes, pelas ruas quintaneiras e quentes. E como ser poeta, consiste em poetar inúmeras vezes, a palavra que comenta o texto se transforma também em poesia e a enxurrada carrega/preserva o dizer poético de quem dá e recebe o presente andarilho de virar obra de arte, em parte, pois o inteiro é livre, entregue à alma e aos empilhamentos do Universo tão cheio de metáforas. Enfim eis o terceiro espaço preenchido pela bandeira da estrela... explicitamente implícita nos quatro elementos... Terra de criação, ar de devaneios, água de vida, fogo de paixões. Sóis satélites desta vida tão inteira, que poderia ser, mas sendo, é, o que se quis e se pensou que não".

albanegromonte

No Mundo Há Muitas Armadilhas





No mundo há muitas armadilhas
e o que é armadilha pode ser refúgio
e o que é refúgio pode ser armadilha

Tua janela por exemplo
aberta para o céu
e uma estrela a te dizer que o homem é nada
ou a manhã espumando na praia
a bater antes de Cabral, antes de Tróia
(há quatro séculos Tomás Bequimão
tomou a cidade, criou uma milícia popular
e depois foi traído, preso, enforcado)

No mundo há muitas armadilhas
e muitas bocas a te dizer
que a vida é pouca
que a vida é louca
E por que não a Bomba? te perguntam.
Por que não a Bomba para acabar com tudo, já
que a vida é louca?

Contudo, olhas o teu filho, o bichinho
que não sabe
que afoito se entranha à vida e quer
a vida
e busca o sol, a bola, fascinado vê
o avião e indaga e indaga

A vida é pouca
a vida é louca
mas não há senão ela.
E não te mataste, essa é a verdade.

Estás preso à vida como numa jaula.
Estamos todos presos
nesta jaula que Gagárin foi o primeiro a ver
de fora e nos dizer: é azul.
E já o sabíamos, tanto
que não te mataste e não vais
te matar
e agüentarás até o fim.

O certo é que nesta jaula há os que têm
e os que não têm
há os que têm tanto que sozinhos poderiam
alimentar a cidade
e os que não têm nem para o almoço de hoje

A estrela mente
o mar sofisma. De fato,
o homem está preso à vida e precisa viver
o homem tem fome
e precisa comer
o homem tem filhos
e precisa criá-los
Há muitas armadilhas no mundo e é preciso quebrá-las.

Ferreira Gullar

Linguage Dos Óio




Quem repara o corpo humano
E com coidado nalisa,
Vê que o Autô Soberano
Lhe deu tudo o que precisa,
Os orgo que a gente tem
Tudo serve munto bem,
Mas ninguém pode negá
Que o Auto da Criação
Fez com maior prefeição
Os orgo visioná.

Os óio além de chorá,
É quem vê a nossa estrada
Mode o corpo se livrá
De queda e barruada
E além de chorá e de vê
Prumode nos defendê,
Tem mais um grande mistér
De admirave vantage,
Na sua muda linguage
Diz quando qué ou não qué.

Os óios consigo tem
Incomparave segredo,
Tem o oiá querendo bem
E o oiá sentindo medo,
A pessoa apaixonada
Não precisa dizê nada,
Não precisa utilizá
A língua que tem na bôca,
O oiá de uma caboca
Diz quando qué namorá.

Munta comunicação
Os óio veve fazendo
Por izempro, oiá pidão
Dá siná que tá querendo
Tudo apresenta na vista,
Comparo com o truquista
Trabaiando bem ativo
Dexando o povo enganado,
Os óios pissui dois lado,
Positivo e negativo.

Mesmo sem nada falá,
Mesmo assim calado e mudo,
Os orgo visioná
Sabe dá siná de tudo,
Quando fica namorado
Pela moça despresado
Não precisa conversá,
Logo ele tá entendendo
Os óios dela dizendo,
Vica lá que eu vivo cá.

Os óios conversa munto
Nele um grande livro inziste
Todo repreto de assunto,
Por izempro o oiá triste
Com certeza tá contando
Que seu dono tá passando
Um sofrimento sem fim,
E o oiá desconfiado
Diz que o seu dono é curpado
Fez arguma coisa ruim.

Os óis duma pessoa
Pode bem sê comparado
Com as água da lagoa
Quando o vento tá parado,
Mas porém no mesmo istante
Pode ficá revortante
Querendo desafiá,
Infuricido e valente;
Neste dois malandro a gente
Nunca pode confiá.

Oiá puro, manso e terno,
Protetó e cheio de brio
É o doce oiá materno
Pedindo para o seu fio
Saúde e felicidade
Este oiá de piedade
De perdão e de ternura
Diz que preza, que ama e estima
É os óio que se aproxima
Dos óio da Virge Pura.

Nem mesmo os grande oculista,
Os dotô que munta estuda,
Os mais maió cientista,
Conhece a lingua muda
Dos orgo visioná
E os mais ruim de decifrá
De todos que eu tô falando,
É quando o oiá é zanoio,
Ninguém sabe cada óio
Pra onde tá reparando.

Patativa do Assaré

março 18, 2008

O Elogio Da Sombra



(Escher, Mão com esfera refletora, 1935)



"A velhice (tal é o nome que os outros lhe dão)
pode ser o tempo de nossa felicidade.
O animal morreu ou quase morreu.
Restam o homem e sua alma.
Vivo entre formas luminosas e vagas
que não são ainda a escuridão.
Buenos Aires,
que antes se espalhava em subúrbios
em direção à planície incessante,
voltou a ser La Recoleta, o Retiro,
as imprecisas ruas do Once
e as precárias casas velhas
que ainda chamamos o Sul.
Sempre em minha vida foram demasiadas as coisas;
Demócrito de Abdera arrancou os próprios olhos para pensar;
o tempo foi meu Demócrito.
Esta penumbra é lenta e não dói;
flui por um manso declive
e se parece à eternidade.
Meus amigos não têm rosto,
as mulheres são aquilo que foram há tantos anos,
as esquinas podem ser outras,
não há letras nas páginas dos livros.
Tudo isso deveria atemorizar-me,
mas é um deleite, um retorno.
Das gerações dos textos que há na terra
só terei lido uns poucos,
os que continuo lendo na memória,
lendo e transformando.
Do Sul, do Leste, do Oeste, do Norte
convergem os caminhos que me trouxeram
a meu secreto centro.
Esses caminhos foram ecos e passos,
mulheres, homens, agonias, ressurreições,
dias e noites,
entressonhos e sonhos,
cada ínfimo instante do ontem
e dos ontens do mundo,
a firme espada do dinamarquês e a lua do persa,
os atos dos mortos,
o compartilhado amor, as palavras,
Emerson e a neve e tantas coisas.
Agora posso esquecê-las. Chego a meu centro,
a minha álgebra e minha chave,
a meu espelho.
Breve saberei quem sou".

Jorge Luís Borges

março 17, 2008

Hilda, Sempre


"Se for possível, manda-me dizer:
- É lua cheia. A casa está vazia -
Manda-me dizer, e o paraíso
Há de ficar mais perto, e mais recente
Me há de parecer teu rosto incerto.
Manda-me buscar se tens o dia
Tão longo como a noite. Se é verdade
Que sem mim só vês monotonia.
E se te lembras do brilho das marés
De alguns peixes rosados
Numas águas
E dos meus pés molhados, manda-me dizer:
- É lua nova -
E revestida de luz te volto a ver".

Hilda Hilst

março 13, 2008

Ainda Existimos...

O Canto dos Cronópios


Quando os cronópios cantam suas canções preferidas, ficam de tal maneira entusiasmados que frequentemente se deixam atropelar por camiões e ciclistas, caem da janela e perdem o que tinham nos bolsos e até a conta dos dias.

Quando um cronópio canta, as esperanças e os famas acorrem a ouvi-lo embora não compreendam muito seu arrebatamento e em geral se mostrem um tanto escandalizados. No meio da roda o cronópio suspende seus bracinhos como se segurasse o sol, como se o céu fosse uma bandeja e o sol a cabeça do Batista, de forma que a canção do cronópio é Salomé nua dançando para os famas e as esperanças que ali estão boquiabertos e perguntando-se se o senhor padre, se as conveniências. Mas como no fundo São bons (os famas são bons e as esperanças bobas) acabam aplaudindo o cronópio, que se recupera sobressaltado, olha em redor e começa também a aplaudir, coitadinho.


Julio Cortázar

Reinvenção


A vida só é possível
reinventada.

Anda o sol pelas campinas
e passeia a mão dourada
pelas águas, pelas folhas. . .
Ah! tudo bolhas
que vêm de fundas piscinas
de ilusionismo… – mais nada.

Mas a vida, a vida, a vida,
a vida só é possível
reinventada.

Vem a lua, vem, retira
as algemas dos meus braços.
Projeto-me por espaços
cheios da tua Figura.
Tudo mentira! Mentira
da lua, na noite escura.

Não te encontro, não te alcanço…
Só - no tempo equilibrada,
desprendo-me do balanço
que além do tempo me leva.
Só - na trevas
fico: recebida e dada.

Porque a vida, a vida, a vida,
a vida só é possível
reinventada.

Cecília Meireles

Ausência


Eu deixarei que morra em mim o desejo de amar os teus olhos que são doces
Porque nada te poderei dar senão a mágoa de me veres eternamente exausto
No entanto a tua presença é qualquer coisa como a luz e a vida
E eu sinto que em meu gesto existe o teu gesto e em minha voz a tua voz

Não te quero ter porque em meu ser tudo estaria terminado
Quero só que surjas em mim como a fé nos desesperados
Para que eu possa levar uma gota de orvalho desta terra amaldiçoada
Que ficou sobre a minha carne como uma nódoa do passado

Eu deixarei... tu irás e encostarás a tua face em outra face
Teus dedos enlaçarão outros dedos e tu desabrocharás para a madrugada
Mas tu não saberás que quem te colheu fui eu, porque eu fui o grande íntimo da noite
Porque eu encostei minha face na face da noite e ouvi a tua fala amorosa
Porque meus dedos enlaçaram os dedos da névoa suspensos no espaço
E eu trouxe até mim a misteriosa essência do teu abandono desordenado

Eu ficarei só como os veleiros nos portos silenciosos
Mas eu te possuirei mais que ninguém porque poderei partir
E todas as lamentações do mar, do vento, do céu, das aves, das estrelas
Serão a tua voz presente, a tua voz ausente, a tua voz serenizada



Vinícius de Moraes

março 12, 2008

Des-Escrito

...
hoje não te escrevi um poema.
hoje libertei meu coração
para sentir como quer, a falta imensa de ti.
deixei que no peito machucado,
o sopro do teu beijo
curasse a dor que às vezes me apavora
nas noites insones e vazias.
deixei que o vento da madrugada
levasse pra longe a dúvida
desta entrega, que me parece tão súbita,
e que me traga cada dia mais até o fundo
deste querer tão grande.
larguei no chão empoeirado por pensamentos tolos
todo medo, qualquer lágrima ou pesar
fechei a porta da memória
apaguei a luz do corredor
e sem te escrever um poema qualquer
vim te dizer
o quanto e como quero ser feliz a teu lado.

albanegromonte

Yeats


Tivesse eu as roupas bordadas do paraíso
tecidas com luz dourada e prateada
o azul e o escuro e os negros panos da noite
e a luz e as metades-luzes.
Eu espalharia essas roupas sob os teus pés.

Mas, sendo pobre, tenho apenas os meus sonhos.
Eu tenho espalhado os meus sonhos sob os teus pés.
Por isso, pise suavemente; afinal, você está andando sobre os meus sonhos.

Willian Butler Yeats

Uma Rosa Perfeita


Dele só ganhei até hoje uma flor
E tão terna, com um coração à espreita
Pura, púrpura, tendo do orvalho o odor
Uma rosa perfeita.

Já conheço a linguagem do buquê
"Nestas frágeis folhas, meu coração se estreita"
E imagino perfeitamente em quê:
Numa rosa perfeita.

Por que é que nunca me dão
uma limusine perfeita, acaso você suspeita?
Ah, não, o meu destino é ganhar sempre
Uma rosa perfeita.



Dorothy Parker

Assim Ele fazia



"Deve-se escrever da mesma maneira como as lavadeiras lá de Alagoas fazem seu ofício. Elas começam com uma primeira lavada, molham a roupa suja na beira da lagoa ou do riacho, torcem o pano, molham-no novamente, voltam a torcer. Colocam o anil, ensaboam e torcem uma, duas vezes. Depois enxáguam, dão mais uma molhada, agora jogando a água com a mão. Batem o pano na laje ou na pedra limpa, e dão mais uma torcida e mais outra, torcem até não pingar do pano uma só gota. Somente depois de feito tudo isso é que elas dependuram a roupa lavada na corda ou no varal, para secar.Pois quem se mete a escrever devia fazer a mesma coisa. A palavra não foi feita para enfeitar, brilhar como ouro falso; a palavra foi feita para dizer."





Graciliano Ramos, em entrevista concedida em 1948

março 11, 2008

Carlos

"Olha, o amor pulou o muro
o amor subiu na árvore em tempo de se estrepar.
Pronto, o amor se estrepou.
Daqui estou vendo o sangue que escorre do corpo andrógino.
Essa ferida, meu bem, às vezes não sara nunca, às vezes sara amanhã".



Drummond

Tulipe Noir


...



já que você não aparece,

visto uma roupa de sol

e saio pela noite

absurda, confusa e obtusa noite

que se abre que nem meu coração pro seu dizer

- e eu quase acreditei, que fosse para mim

as palavras ajuntadas

em versos

em um querer submerso em dúvidas

de coração que não sabe bem como é amar

fronteira do destino

configura o mapa

e vejo como é distante

a tua janela do meu olhar empenado

por tanto perder luzes&cores.

remendo o buraco no peito

e costuro em linha de tricô

um infinito azul pra separar você de mim

e você não aparece

nem pergunta como estou

e se eu estivesse agora mesmo num esquife

à beira do rio que cruza minha cidade

esperando chuva piedosa que me levasse

pro olhar de Caronte

- eu, sem moeda alguma

vagaria pelo inferno

buscando Beatriz que nunca quis me fazer feliz

igual a você

que num minuto abre por inteiro a guarda

e me dexa penetrar alma adentro

e depois, logo depois

me fecha portas&janelas

me jogando no canto escuro

da mente

- de onde nunca devia ter saído

de que adianta conhecer a Luz

saber o sabor do prazer

do sorrir

do querer mais uma vez ainda e sempre

se é pra arrancar

fibra a fibra

cada naco de um peito que tanto

dói

chegando a incomodar.

mas insisto em procurar

por seu olhar numa estrela vazia

no luar que um dia pousou de você pra mim

ou num verso tenso

que mal julguei

já pensei

(tola que sou)

ser para mim

e já que você não aparece

visto a túnica amarela da agonia

do desamor

da tristeza que acompanha

quem só quer mesmo

nesta vida mesquinha e dura

ser um pouco feliz

e me vou noite afora,

com você sempre&sempre por dentro


albanegromonte

março 07, 2008

Sair

Largar o cobertor, a cama, o
medo, o terço, o quarto, largar
toda simbologia e religião; largar o
espírito, largar a alma, abrir a
porta principal e sair. Esta é
a única vida e contém inimaginável
beleza e dor. Já o sol,
as cores da terra e o
ar azul – o céu do dia –
mergulharam até a próxima aurora; a
noite está radiante e Deus não
existe nem faz falta. Tudo é
gratuito: as luzes cinéticas das avenidas,
o vulto ao vento das palmeiras
e a ânsia insaciável do jasmim;
e, sobre todas as coisas, o
eterno silêncio dos espaços infinitos que
nada dizem, nada querem dizer e
nada jamais precisaram ou precisarão esclarecer.


Antonio Cícero, em A cidade e os Livros

março 05, 2008

Além Das Estações







então te digo assim de repente, à queima-roupa, ferindo o meu peito, que vou partir de ti.



enquanto me resta agonia alguma de viver



enquanto as magnólias de veludo não se transmutam em cravos de mortos.



e te digo ainda


que minha ausência nas horas inválidas



não serão mais que estranhamentos de Poeta



de joelhos diante do Tempo que passa.


passei um Tempo


passarás também, Tempo que leva um Centauro pra cruzar o jardim, e Tempo todo


necessário que seja



pra apagar o que nunca chegou a ser escrito na lousa negra do meu céu



por enquanto sem estrelas



mas com espaçonaves várias a partir e chegar



em tormentosas viagens para lugar nenhum



nenhum lugar


onde estaria você


em cores e ao vivo



feito a fotografia que trago de ti dentro de um livro do Julio



que traz um post it amarelo



onde diz



- um beijo-



e coisas mais,



que melhor não lembrar



pra não estalar os cristais frágeis da minha fatigada alma



então olho para dentro do espelho



quebrado por dentro e mal refletindo o leve sorriso que me



rasga as entranhas viciadas na tua voz e no fogo da tua existência



- e o riso é o avesso da lágrima- disse o poeta lusitano



e me vejo dissolvida em lágrimas de saudade tanta



do pouco tão pouco que tive de ti


em mim, se é que.



e busco na melodia de um blues o que encontraria num tango



dançado na parede



a esperança de não seguir



caminho errado


estrada facilitada pela tristeza



pelo grito enviesado da dor na mente


dos poetas ensandecidos



ditos assim pela poeta do Sul



e sinto piedade das flores de Outubro


que brotaram prematuras



e morreram sem florir ao certo



qual fruta colhida antes da estação



cheia de amargor



penso que nos colhemos antes da hora



não era o minuto inventado em meu relógio ansioso



nem a tua falta de marcadores do Tempo



era o átimo



da espera



da maturidade


do fruto caindo da árvore


ou da flor nascida antes de ser arrebatada pelo deus sol, ainda molhada em orvalho



- perfeição de hora natureza.




e somos flores de Dezembro, em Junho ou Setembro



sem estações



na solidão



dos que beberam


além da conta



enquanto um jazz se mesclava na noite



que se via passar na janela fechada do apartamento ao lado



onde tudo era visto com os olhos virados para dentro


como carta de tarot



- que antecipou tudo que acontecerá



comigo e com você ali do outro lado da luarua



quando isto tudo acabar



e só à memória das peles



será um dia permitido relembrar





albanegromonte

A Quem Passa Por Aqui...

«Sonho por vezes que, quando o dia do juízo chegar e os grandes conquistadores, advogados e estadistas vierem receber as suas recompensas – coroas, louros, nomes gravados indelevelmente em mármore imperecível -, o Todo-Poderoso se voltará para S. Pedro e dirá, não sem uma certa inveja, quando nos vir chegar com os nossos livros debaixo dos braços:
— Olhai, estes não precisam de recompensa. Nada temos para lhes dar. Eles amaram a leitura" .


Virginia Woolf

Certeza


Num deserto sem água
Numa noite sem lua
Num país sem nome
Ou numa terra nua
Por maior que seja o desespero
Nenhuma ausência é mais funda do que a tua.



Sophia de Mello Breyner