maio 22, 2008

A Nuvem Carolina



'Se me perguntassem: o que distingue o grande poeta? Eu responderia: Ser capaz de fazer um poema inesquecível. O poema que adere à nossa vida de sentimento e de reflexão, tornando-se coisa nossa pelo uso. Para mim, Joaquim Cardozo, entre os muitos títulos de criador, se destaca por haver escrito o longo e sustentado poema A Nuvem Carolina que é uma das minhas companheiras silenciosas da vida."

(Carlos Drummond de Andrade)



No alpendre da casa de um antigo sítio

Onde morei por longo tempo – longos trabalhos –

Todas as manhãs eu vinha ver o dia

Que sobre as cajazeiras, longe, amanhecia.

Ao lado, ao alto permaneciam. . . entre-havia

Dois morros de matas virgens coroados.

Na abertura desses montes, sempre aparecia,

Na mesma posição, na mesma hora matutina,

Uma nuvem cor-de-cinza e leve bruma,

Com fímbrias e vestígios cor-de-ouro;

– Uma nuvem ficava entre os dois capões do mato

Por alguns quantos de tempos,

Por alguns modos de sombras temporais.

Uma vez tive a impressão que ela me acenava,

Me fazia, e tanto me fazia, em mímica, sinais:

– Gestos de fuga, de fraga, de fronde e curso d'água –

Símbolos de uma linguagem nova quase toda indecidível;

Não compreendi, a princípio, aquilo, o que nela significava,

Mas senti que eram gestos, e gestos são palavras.

Resolvi subir o morro pela beira do corgo,

Plantado de jaqueiras novinhas.

E fui caminhando até junto da abertura das matas

Onde a formosa nuvem de cinza e ouro

Me aguardava. Perto cheguei.

Como numa só voz os gestos se fundiram,

A mim aderiram, a mim se ajustaram (juntos/disjuntos)

A mim se advinharam,

E enfim disseram em voz nevoenta:

– Estou cansada de ser um vôo,

Um vôo viúvo de uma asa; desejava ter

Comigo a asa. . . uma asa que fugisse, que batesse,

Que vibrasse no ar com um som. . .

– E eu lhe disse: – Por que apenas uma asa?

Podias ter/ser um ramo, um ramo de flores.

Um ramo de folhas verdes e sobreverdes,

Ramo de uma árvore das mais belas desta mata.

– E ela: – Ah! Quem me dera!

Me vestir de amarelo nos dias de Pau D'Arco,

Me vestir de roxas sucupiras nos momentos dos ares tristes.

Quem me dera!

– Voltei a dizer-lhe: – E por que não um animal?

Um animal que exprimisse os atos da asa?

Ou. . . mesmo qualquer um outro do teu agrado?

– Ela: – Sim, seria bom, gostaria de ser uma garça

Que é, só e toda, uma asa. Mas, poderia ser uma ovelha

Pastando o dia todo nos deslizes das colinas

Ou uma novilha já no momento da necessidade

Do amor. Podia ser uma novilha amorosa.

– De súbito me veio a pergunta: – E uma mulher?

Nunca pensaste em ser uma mulher?

Senti que a nuvem, toda em gestos de fraga e curso d'água,

Me transmitiu uma expressão de espanto.

Uma expressão de extrema. . . extrema o quê?

– Perdi o contato com a linha dos seus gestos;

Mas voltei a compreender logo em seguida.

Falou, depois de algum tempo:

– Pensei, sim, pensei muitas vezes

Mas, por fim de tudo pensando, concluí

Que mais valeria possuir de novo a asa:, depois de algum tempo:

– Pensei, sim, pensei muitas vezes

Mas, por fim de tudo pensando, concluí

Que mais valeria possuir de novo a asa:

Mulher deste meu vôo. No meu pensamento,

Ser árvore, ser ovelha, ou ser mulher

Que valem? Todas morreram.

Todas se perderam, todas me. . . esqueceram.deste meu vôo. No meu pensamento,

Ser árvore, ser ovelha, ou ser mulher

Que valem? Todas morreram.

Todas se perderam, todas me. . . esqueceram.

Com essas palavras começou a se esconder

Por detrás do morro, sem mesmo um gesto de despedido

[abandono.

– Nuvem de ouro e cinza, se fosses mulher

Eu te chamaria Carolina:

Carolina se chamaram minha mãe e minha irmã.

Ambas, há muito, faleceram,

Mas eu, em ti, as saudaria todas as manhãs.

Com as minhas últimas palavras, a nuvem

Levada pelo vento, já se ocultara,

Como em outros dias, por detrás da mata.

Desci o corgo, pela sua margem de gramíneas,

Ao longo, longo das jaqueiras novinhas;

Voltei a casa, e dessa conversa, e mais de tudo, esqueci.

Tarde da noite daquele dia, um vento forte: um sopro

[frio/forte,

Uma chuva contínua e prolongada

Passaram sobre o telhado; as bátegas bateram

Sobre as telhas, como dedos num teclado.

– O vento soando entre as ripas e os caibros,

Como o ar nos tubos de um órgão. –

Era uma chuva noturna, como muitas outras, e a sua música banal

Cantava no silêncio dos ares campesinos.

– Desperto, escutei toda a sua sinfonia. . .

Notei, porém, que acompanhando o som da chuva, havia

Qualquer coisa de choro e pranto malogrado.

De inundado rumor de mágoa se envolvia,

Em vento e chuva, a casa toda:

Como se fosse objeto de sonho e de magia,

Pelos ares da noite alguém chorava.

Enfim passou a forte chuva, num adeus de aguaceiro

E o silêncio voltou muito limpo e lavado.

Passou. Tudo tornou ao sossego campestre.

– Dormi até o fim da noite.

Na manhã seguinte, como sempre, ao alpendre

Saí, para ver o dia, para ver o dia,

Que sobre as cajazeiras, longe, amanhecia.

Ao lado, ao alto, entre morros, tudo era vazio:

A nuvem cinza e ouro àquele dialongo das jaqueiras novinhas;

Voltei a casa, e dessa conversa, e mais de tudo, esqueci.

Tarde da noite daquele dia, um vento forte: um sopro

[frio/forte,

Uma chuva contínua e prolongada

Passaram sobre o telhado; as bátegas bateram

Sobre as telhas, como dedos num teclado.

– O vento soando entre as ripas e os caibros,

Como o ar nos tubos de um órgão. –

Era uma chuva noturna, como muitas outras, e a sua música banal

Cantava no silêncio dos ares campesinos.

– Desperto, escutei toda a sua sinfonia. . .

Notei, porém, que acompanhando o som da chuva, havia

Qualquer coisa de choro e pranto malogrado.

De inundado rumor de mágoa se envolvia,

Em vento e chuva, a casa toda:

Como se fosse objeto de sonho e de magia,

Pelos ares da noite alguém chorava.

Enfim passou a forte chuva, num adeus de aguaceiro

E o silêncio voltou muito limpo e lavado.

Passou. Tudo tornou ao sossego campestre.

– Dormi até o fim da noite.

Na manhã seguinte, como sempre, ao alpendre

Saí, para ver o dia, para ver o dia,

Que sobre as cajazeiras, longe, amanhecia.

Ao lado, ao alto, entre morros, tudo era vazio:

A nuvem cinza e ouro àquele dia

Não aparecera entre os capões do mato: não. não. não. . . nãon. . .

Em todas as manhãs seguintes. . . sucessivas. . .

– Nunca/não surgiu, surgiu nunca/jamais

Com gestos de fuga e longo vôo.

– Gestos de fraga, de fronde e curso d'água.aparecera entre os capões do mato: não. não. não. . . não. . .

Em todas as manhãs seguintes. . . sucessivas. . .

– Nunca/não surgiu, surgiu nunca/jamais

Com gestos de fuga e longo vôo.

– Gestos de fraga, de fronde e curso d'água.


Joaquim Cardozo

De Pernambuco

“Deixemos, portanto, este céu deserto como um deserto
boiar neles como flores em algum lago.
Ah, este céu é o olho maior que nos espia,
ah, como este céu abandonado pesa sobre os meu ombros
e sobre cada um de meus sonhos!”

Deolindo Tavares

maio 08, 2008

Hilda



Ária Amaríssima de Um Instante

SOBRE mim o sudário das coisas. Brandura extensa

Camada-transparência sobre as gentes. Vê só:

Eu não te olho com o teu olho que sabe

Que quase tudo em ti é transitório. Meu olho-liquidez

Descobre uma tarde esvaída, tarde-madrugada

Tempo alongado onde te fizeste em viuvez.

Não perdeste a mulher ou o homem que amavas. Amamos tanto

E a perda é cotidiana e infinita. Não é isso

Hilda Hilst

maio 07, 2008

Da Série Gaveta Aberta



Estrelas De



Horas todas passam por mim
enquanto sentada, frente a frente com o relógio
percebo que são elas, soldados números
que escapolem do espelho onde
perco minha imagem e semelhança
com qualquer personagem que tenhas lido.
Eu e as Horas somos.
quem diria não, neste instante de ser contente?
brincar de colibri, de flores em plástico
de bombas chocolate e pára-raios nas cortinas
arremedadas no fogo de vela que nunca se acende.
Ah.
Mas e o que seria desta fumaça insana se não fossem teus ruídos
fundo do poço onde me enlevo
e bebo em cada palavra um algoz xarope amargo
(doença se cura com dor e com remédio ruim)
poço onde emposso tua imperatriz de gelo
ante meu caliente e enorme coração que nunca
nem hoje que, aprende a desbater...
Coração este que grita, sussurra e treme bambu que é
não quebra, não parte, não rasga
embrutece e logo mais se acende em colares de topázios colhidos numa rua
mineira ou baiana
quem saberá com certeza?
era brilho, isso eu vi.
e se aquele vitral lilás trouxer a luz do sol se pondo
será quase noite e eu te esperarei numa colina
vestida de branco
flor vermelha no cabelo e pés descalços
de tanto caminhar
e mesmo que chegue a madrugada sem ti
acenderei fogueiras de nossos sentires
e deixarei que anjos bebam deste vinho
neste cálice
seio meu
guardado pra ti.
Um dia.
Ou outra tarde
virás
e eu saberei de ti quem era desde o princípio
quando Tudo era o caos
e nem estrelas eram pó.

albanegromonte

Pessoa Para Mendigo


Era um dia comum.
Sol forte, poucas nuvens, ar parado.
Uma flor seca estremecia sob os pneus do caminhão de lixo e Mendigo fumava um toco de cigarro que trazia uma marca de batom. Olhou para o céu claro, fuçou os bolsos em busca de nada e atirou um pouco de nada no asfalto quente.
Mendigo sorriu para a menininha que abraçava a babá, e ela devolveu-lhe o sorriso com a mesma boca banguela. Dentes, pra que dentes, quando não se tem o que mastigar?
Atravessou a rua e parou em frente à fonte. Água limpa. Se puser as mãos me prendem. Se beber, me internam.
Sede, fome, solidão.
Mendigo caminha lentamente pela praça. Lixo. Sempre tem algo. Olhando pros lados, em busca de um socorro que não vem, Mendigo lança as mãos sujas no cesto e cata...
Um livro.
O que faz um livro tão bonito no lixo? Pra que serve a beleza do livro? Não enche barriga. A não ser a de quem escreveu, pensa Mendigo.
Folheia distraído as páginas e pára numa frase. Pensa e sorri amargo. Porque diabos ele tinha que abrir este livro?
Senta num banco e começa a ler as frases em voz baixa e gutural de quem não fala há muito. Um cachorro lambe-lhe os pés quase desnudos e cheira o fétido odor da pobreza mais absoluta que vem das suas vestes.
Mendigo lê.
O relógio da igreja marca as horas que passam sem que ele perceba. E o dia quase termina junto com o livro. Algumas páginas arrancadas deixaram-no curioso frases grifadas com tinta cor-de-rosa e uma dedicatória na última página: "Para Elvira, com amor do seu, sempre seu, Artur.", deixaram-no emocionado.
Acha bonito o amor.
Sente a pequena fisgada no centro do seu corpo e sabe o que significa.
Fome. Mendigo tem fome no corpo, mas sente a alma alimentada. Levanta-se, marca uma frase com um palito de fósforo queimado, guarda o livro no bolso e segue. Pensando no que leu, Mendigo revê sua vida em quadros a correrem pela sua cabeça... A infância desgraçada pela atitude do pai, a mãe se prostituindo, a violência de casa, da rua, do orfanato, o esforço para estudar, o roubo que não fez, a injusta prisão,
o emprego no cais, a mulher que amou e o traiu, a bebida que destruiu seu fígado, seus sonhos, os filhos que o renegaram, a rua, a rua, a rua... amarga e doce rua, com seus postes, seus pontos de ônibus, seus passageiros, caridade, caridade, caridade... a sopa no fim da noite,
o toco de cigarro no chão, a lapada de cana que ia pro santo, o frio, o sono, a polícia, o sinal, o sinal,
O SINAL !!!
Grita alguém, mas Mendigo não vê, e o caminhão de lixo que trazia em seus pneus uma flor seca e estremecida, range freios mas é tarde, é tarde, é tarde... Mendigo abre os olhos e nada sente ou vê. Leva a mão ao peito e suspira uma dor tão grande de deixar essa vida bandida que era a sua... Justo agora, que sabia ...
A mão suja cai na poça de lama, e um rapaz vê as páginas do livro virando ao sabor da leve brisa que agora passa, pega o livro e lê a frase grifada em carvão:
"Venha o que vier, nunca será maior do que minha alma".
Sorri e joga o livro no chão morno.
"Pessoa para mendigos... Faltava essa".
E em algum lugar do Universo, um Mendigo é recebido por um homem magro, de óculos , com um chapéu na mão,
e segue feliz, ouvindo as poesias das páginas arrancadas...

albanegromonte

maio 03, 2008

Tempo


E por trás desta cortina que se chama tempo, eu te revi.
Meu antigo e quase amor de sempre.
Nem sei ao certo o que, mas.
Entre os semaforos que se diziam em números verdes, ou entre as lembranças azuis da minha mente dissoluta. Sei que te revi. Quase pude ouvir tua voz a me dizer baixinho, enquanto no chuveiro eu redesenhava notas e sons quaisquer que houveram entre nós.
"Meu passarinho"
E nunca mais eu fui.
Gaiolas douradas se partiram em mares e céus.
Nuvens de algodão doce. Amarga que nem fel era ou é esta vida que se passa sem tua alegria.
(sim, eu sei que nada era, além de desejo ou necessidade, mas... deixa que me engane e erre o alvo: fui feliz.)
Eu, teu passarinho emudecido em luas e nadas que se retraem em velas que se apagam ao sabor de outros sorrisos, pois.
Novidade, não sou. Saigon já se cantou em ouvidos que hoje me sentem em qualquer dissonância, mas que se corrije e pede mais que um trinar de pássaro cego.
Teria que ser eu, mais que outro pássaro que cantava por tantas outras razões além de amor pela voz?
Não sei.
O tempo, este Senhor que seria mais ou tão bonito quanto a cara/face do meu filho (dizia o baiano das mil caras/faces)
Este senhor se veio e me levou a pele lisa, o músculo exato, a doçura e a tentação;
Eu era, e se.
mas em ti, hoje sou o maduro ser. A fruta que não se corrompe e que espera sem ansiedade, o brotar da flor.
Eu sou a que te quis sempre, desde que.
Se não acreditavas e nem eu... éramos nós os que se rebelavam contra o insolúvel dilema: felizes, só se assim juntos.
Outra forma, não.
Mas se quisemos tentar, então.
Tempo que se refez em colunas de areia que esvaíram em taças invertidas sob pirâmides de compreensão.
Preço todo pago sem piedade.
Assim nós pagando em parcelas de nada, pois ruge e urge o tempo em nossas peles e átomos.
Tempo que se revê em linhas de face.
Espelhos nossos e noites que se passam indiferentes ao desejo de eternidade em nós.
Somos assim.
Eu aqui, olhos abertos perante o dia que se alvorece em horizontes de matos e rio atrás do quintal da nossa casa.
Tu que dormes envolto em quimeras insanas, em calores e ventos sob o cobertor, no escuro da janela que fecho pra te proteger do mundo que se anuncia em finais apoteóticos.
Meu útero diverso diz não, e meu coração, rosa de planeta em luvas de pelica, diz:
Sou, posso, e!
Mas nada que venha de esmola poderá ser de nós.
te digo adeus e percorro os caminhos antigos de uma saudade que se apaga em memórias de nada.
Sei.
E vou, para não mais em teu porto seguro peito
Ancorar cabeça que dói, que machuca e sente.
Nunca mais.
Para que sejas tu, amor meu, feliz.

albanegromonte

Clarice, para Djabal

“Um nome para o que eu sou, importa muito pouco. Importa o que eu gostaria de ser.
O que eu gostaria de ser era uma lutadora. Quero dizer, uma pessoa que luta pelo bem dos outros. Isso desde pequena eu quis. Por que foi o destino me levando a escrever o que já escrevi, em vez de também desenvolver em mim a qualidade de lutadora que eu tinha? Em pequena, minha família por brincadeira chamava-me de ‘a protetora dos animais’. Porque bastava acusarem uma pessoa para eu imediatamente defendê-la.
[...] No entanto, o que terminei sendo, e tão cedo? Terminei sendo uma pessoa que procura o que profundamente se sente e usa a palavra que o exprima.
É pouco, é muito pouco.”