dezembro 29, 2008

Neste momento é assim

em meu coração tem um pássaro
que quer sair
mas eu sou mais forte que ele,
eu falo, fica aí dentro, eu não vou
deixar ninguém
te ver.

em meu coração tem um pássaro
que quer sair
mas eu taco uísque nele e respiro
fumaça de cigarro
e as putas e os barmen
e as caixas do mercado
nunca sabem que
ele está
aqui dentro.

em meu coração tem um pássaro
que quer sair
mas eu sou mais forte que ele,
eu falo,
fica na tua, você quer me pôr
em apuros?
você quer sacanear com minha
obra?
detonar com minha venda de livros na
Europa?

em meu coração tem um pássaro
que quer sair
mas eu sou mais esperto, só deixo ele sair
de noite às vezes
quando todos estão dormindo.
eu falo, sei que você está aí,
então não fique
triste.

daí o ponho de volta,
mas ele ainda canta um pouco
aqui dentro, eu não o deixei morrer
totalmente
e a gente dorme junto desse
jeito
com nosso
pacto secreto
e é bem capaz de
fazer um homem
chorar, mas eu não
choro, você
chora?

Charles Bukovski, Blue Bird

Animalidade




"Com apenas 15 segundos de alerta, os que vivem em um raio de 10 quilômetros da Faixa de Gaza sabem que precisam correr para se abrigar assim que as sirenes de "Código Vermelho" soam. Os que estão mais longe têm até 45 segundos para correr".

dezembro 24, 2008

Natal de Cronopio


A vocês, que me visitam, um poema que diz o que eu gostaria.
Feliz natal aos 6!


Fim de ano

Nem o pormenor simbólico
de substituir um dois por um três
nem essa vã metáfora
que convoca um lapso que morre e outro que surge,
nem o cumprimento de um processo astronómico
atordoam ou minam
o planalto desta noite
e obrigam-nos a esperar
as doze irreparáveis badaladas.
A causa verdadeira
é a suspeita geral e confusa
do enigma do Tempo;
é o assombro em face do milagre
de que apesar de todos os acasos,
de que apesar de sermos
as gotas do rio de Heraclito,
perdure em nós alguma coisa:
imóvel.

Jorge Luís Borges

dezembro 12, 2008

Bettie Page




Sempre achei que a Betsy era mais que um corpo bonito e uma mente aloprada.
Por isto, a foto ingênua. É como a vejo.
Morreu hoje, aos 85.

Para Quem Joga Amarelinha


A Lebre hoje foi ferida no coração.
Setas enviadas por anjos também machucam.
A Lebre chorou tanto que nem viu o Cronopio a seu lado oferecendo-lhe um lencinho bordado com uma violeta, que é a cor mais linda que a Maga gostava quando brincava de Amarelinha nas palavras de Cortazar.
Hoje a Lebre nem viu se fez sol, ou se choveu.
Nuvens fofinhas baixaram a seu lado para que brincasse de balançar no céu, mas as lágrimas embaçavam-lhe os óculos, os olhos...
As lágrimas corriam tanto, que um rio se formou ao lado da árvore, que depois cresceu mais e virou um oceano. Aí, uma caravela lusitana apontou no horizonte trazendo Famas que dançavam catalas e Esperanzas desconsoladas com a mudança.
Ouviu-se um suspiro ao longe, e o Jaguadarte acordou pra ver o que acontecia.
Da caravela desceu um menestrel, que cantou uma valsinha.
A Lebre sorriu um sorrisinho meio sem graça, mas achou bonito tanta gente querendo fazê-la feliz.
Deu um beijo no poeta menestrel, ameigou a cabeça do Jaguadarte, daçou catala com as Famas e com as Esperanzas e depois abraçou seu querido Cronopio, aninhando-se em seu peito para dormir com um leve ar de insanidade.

albanegromonte

*indiscrições sob páginas de Cortazar e Carroll

Advertência


“E se me achar esquisita, respeite também.
até eu fui obrigada a me respeitar.”

Clarice Lispector

Ana


Quando entre nós
só havia uma carta certa
a correspondência completa
o trem os trilhos
a janela aberta uma certa paisagem
sem pedras ou sobressaltos
meu salto alto
em equilíbrio
o copo d’água
a espera do café



Ana Cristina César

dezembro 09, 2008

Salomé




Insónia roxa. A luz a virgular-se em medo,
Luz morta de luar, mais Alma do que a lua…
Ela dança, ela range. A carne, álcool de nua,
Alastra-se pra mim num espasmo de segredo…

Tudo é capricho ao seu redor, em sombras fátuas…
O aroma endoideceu, upou-se em cor, quebrou…
Tenho frio… Alabastro!… A minha Alma parou…
E o seu corpo resvala a projectar estátuas…

Ela chama-me em Íris. Nimba-se a perder-me,
Golfa-me os seios nus, ecoa-me em quebranto…
Timbres, elmos, punhais… A doida quer morrer-me:

Mordoura-se a chorar - há sexos no seu pranto…
Ergo-me em som, oscilo, e parto, e vou arder-me
Na boca imperial que humanizou um Santo…

Mário de Sá-Carneiro

dezembro 04, 2008

Este Manoel...


Deus disse: Vou ajeitar a você um dom:
Vou pertencer você para uma árvore.
E pertenceu-me
Escuto o perfume dos rios.
Sei que a voz das águas tem sotaque azul.
Sei botar cílio nos silêncios.
Para encontrar azul eu uso pássaros.
Só não desejo cair em sensatez.
Não quero a boa razão das coisas.
Quero o feitiço das palavras.

Manoel de Barros

Pirandello


Então para os outros sou aquele estranho que surpreendi no espelho: sou ele e não eu, tal como me conheço! Sou aquele estranho que, à primeira vista, não reconheci. Aquele estranho que não posso ver viver a não ser assim, num instante inesperado. Um estranho que só os outros podem ver e conhecer.

Luigi Pirandello

Los Amantes




"Weeping Nude," by Edvard Munch, oil on canvas,


Isso é tão bonito de ler, tão dolorosamente bem forjado que me deu vontade de chorar...
Para o seu olhar poético, Djabal.


Harux y Harix han decidido no levantarse más de la cama: se aman locamente, y no pueden alejarse el uno del otro más de sesenta, setenta centímetros. Así que lo mejor es quedarse en la cama, lejos de los llamados del mundo. Está todavía el teléfono, en la mesa de luz, que a veces suena interrumpiendo sus abrazos: son los parientes que llaman para saber si todo anda bien. Pero también estas llamadas telefónicas familiares se hacen cada vez más raras y lacónicas. Los amantes se levantan solamente para ir al baño, y no siempre; la cama está toda desarreglada, las sábanas gastadas, pero ellos no se dan cuenta, cada uno inmerso en la ola azul de los ojos del otro, sus miembros místicamente entrelazados.
La primera semana se alimentaron de galletitas, de las que se habían provisto abundantemente. Como se terminaron las galletitas, ahora se comen entre ellos. Anestesiados por el deseo, se arrancan grandes pedazos de carne con los dientes, entre dos besos se devoran la nariz o el dedo meñique, se beben el uno al otro la sangre; después, saciados, hacen de nuevo el amor, como pueden, y se duermen para volver a comenzar cuando despiertan. Han perdido la cuenta de los días y de las horas. No son lindos de ver, eso es cierto, ensangrentados, descuartizados, pegajosos; pero su amor está más allá de las convenciones.


Juan Rodolfo Wilcock

dezembro 02, 2008

Fendas

Flor em brasa queima a folha. Serena folha que não sabia dos calores que se davam nessas horas. Língua farta onde se farta de seiva doce e macia. Onda de desejo vendaval de cores e sonhos nunca planejados. Ela. Em pele, carne e osso, sobre seu corpo mais carne que quando não era batizada. Pecado extremo, que deus nenhum há de perdoar. Vigia da porta do inferno chama em canções medievais - venha... solte as amarras que a prendem... Cabelos se enrodilham em pêlos curtos e os seios duros e tensos se encontram em harmonia.Sintonia, sinfonia de quereres e arderes em claves de Mi e Sol. Sol que esfria ao vê-la em agonia de não temer o que deve... Escultura viva em meio ao desatino que é sempre ver o que não se quer, o que não se quis, o que não se acreditou ser capaz de existir... e ela existe. E dentro de você ela roda, que nem pião em mão de menino abençoado. Ela deita com você e acorda seus sonhos de mulher pacata, trazendo suores e prazeres, dando-lhe a mão que simboliza o tudo. E tudo é ela. Ela que se invade de luzes, calores e dores. Ela que quer sair do seu sonho, para viver em você no dia que amanhece através da cortina puída do que você quis ser um dia. Ela é você ontem, quando a dureza da vida engatava rés e primeiras avançando sinais e conceitos. Ela existe e mora ao lado da sua alma envelhecida pelos nãos que a vida lhe deu. Ela é o fim e começo de tudo. Dê-lhe a sua mão e todo sim será seu. E ele não terá mais vez neste sofrer em vão.



albanegromonte

Frida Mujer



Mi Diego:

Espejo de la noche.
Tus ojos espadas verdes dentro de mi carne. Ondas entre nuestras manos.
Todo tú en el espacio lleno de sonidos - en la sombra y en la luz.
Tú te llamarás AUXOCROMO el que capta el color. Yo CROMÓFORO - la que
da el color.
Tú eres todas las combinaciones de los números. la vida.
Mi deseo es entender la línea la forma la sombra el movimiento. Tú
llenas y yo recibo.
Tu palabra recorre todo el espacio y llega a mis células que son mis
astros y va a las tuyas que son mi luz.

Frida Kahlo

Tempos Idos



Bilhete


e é por mim e por ti,
que lanço fogo às vestes desta saudade invertida
e atiro aos pés da santa, as pedras que carregava no bolso
antes de entrar no mar.
é por nós, amor meu,
que gravito em torno de Mercúrio
deixando a Lua para teus olhos
por ti e por mim,
esqueço a última canção que ouvimos
o teu cheiro que ainda impregna os lençóis
a tua marca no meu corpo
tua imagem do outro lado do espelho onde sempre me vejo antes de sair para a luta diária.
crucifico as lembranças todas, tão tolas
em pérolas no pescoço
e recolho ao tambor a bala de prata
engasgo a pílula
o veneno
e me agarro no parapeito da janela antes de pousar no chão quente logo ali na frente
aguardo o sinal abrir
teu olhar surgir
(esta cidade nunca foi tão grande)
e nunca te vejo além da velha fotografia
ou da memória de tantos sóis poentes.
e é ainda teu gosto, que me vem na língua
quando atravesso o deserto sem luar e sem fim
tentando apenas te esquecer

albanegromonte

Aninha e Suas Pedras

Não te deixes destruir...
Ajuntando novas pedras
e construindo novos poemas.
Recria tua vida, sempre, sempre.
Remove pedras e planta roseiras e faz doces. Recomeça.
Faz de tua vida mesquinha
um poema.
E viverás no coração dos jovens
e na memória das gerações que hão de vir.
Esta fonte é para uso de todos os sedentos.
Toma a tua parte.
Vem a estas páginas
e não entraves seu uso
aos que têm sede.

Cora Coralina (Outubro, 1981)

Filho de Peixe





- Amanhã faço dez anos, vou aproveitar bem este meu ultimo dia de nove anos.
Pausa, tristeza:
-Mamãe, minha alma não tem dez anos.
-Quanto tem?
-Só uns oito
- Não faz mal, é assim mesmo.
- Mas eu acho que se devia contar os anos pela alma. A gente dizia: aquele cara morreu com vinte anos de alma. E o cara tinha morrido mas era com setenta anos de corpo.

Clarice Lispector