setembro 30, 2008

Da Série Pequenos Colapsos

e quando te ausentas,
tua marca em mim se acende brasa candente
e o som dos teus passos em nosso chão atropela meus afazeres
ecos do teu riso se espalham pelos ares perfumados
com o teu cheiro, teu hálito
e tua lembrança me espanta ainda
como se não fosse apenas por uma noite
(longa que nem estrada pra nenhum lugar)
este vazio no lençol
no meu peito
nesta completa falta de jeito
que parecem ter todas as coisas aqui
sem ti.

albanegromonte

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"PRECISA-SE"

Sendo este um jornal por excelência, e por excelência dos precisa-se e oferece-se, vou pôr um anúncio em negrito: precisa-se de alguém homem ou mulher que ajude uma pessoa a ficar contente porque esta está tão contente que não pode ficar sozinha com a alegria, e precisa reparti-la. Paga-se extraordinariamente bem: minuto por minuto paga-se com a própria alegria. É urgente pois a alegria dessa pessoa é fugaz como estrelas cadentes, que até parece que só se as viu depois que tombaram; precisa-se urgente antes da noite cair porque a noite é muito perigosa e nenhuma ajuda é possível e fica tarde demais. Essa pessoa que atenda ao anúncio só tem folga depois que passa o horror do domingo que fere. Não faz mal que venha uma pessoa triste porque a alegria que se dá é tão grande que se tem que a repartir antes que se transforme em drama. Implora-se também que venha, implora-se com a humildade da alegria-sem-motivo. Em troca oferece-se também uma casa com todas as luzes acesas como numa festa de bailarinos. Dá-se o direito de dispor da copa e da cozinha, e da sala de estar. P.S. Não se precisa de prática. E se pede desculpa por estar num anúncio a dilacerar os outros. Mas juro que há em meu rosto sério uma alegria até mesmo divina para dar.

Clarice Lispector

Julio


PREÂMBULO ÀS INSTRUÇÕES PARA DAR CORDA AO RELÓGIO

Pensa nisto: quando te oferecem um relógio, oferecem-te um pequeno inferno florido, uma prisão de rosas, um calabouço de ar. Não te dão somente o relógio, muitos parabéns, que te dure muitos e bons, é uma ótima marca, suíço com não sei quantos rubis, não te oferecem somente esse pequeno pedreiro que prenderás ao pulso e passeará contigo. Oferecem-te -- ignoram-no, é terrível ignorá-lo -- um novo bocado frágil e precário de ti mesmo, algo que é teu mas não é o teu corpo, que tens de prender ao teu corpo com uma correia, como um bracito desesperado pendente do pulso. Oferecem-te a necessidade de lhe dar corda todos os dias, a obrigação de dar corda para que continue a ser um relógio; oferecem-te a obsessão de ver as horas certas nas montras das joalharias, o sinal horário na rádio, o serviço telefónico. Oferecem-te o medo de o perder, de seres roubado, de que caia ao chão e se parta. Oferecem-te uma marca, a convicção de que é uma marca superior às outras, oferecem-te a tentação de comparares o teu com os outros relógios. Não te oferecem um relógio, és tu o oferecido, a ti oferecem para o nascimento do relógio.

INSTRUÇÕES PARA DAR CORDA AO RELÓGIO

Lá bem no fundo está a morte, mas não tenha medo. Segure o relógio com uma mão, com dois dedos na roda da corda, suavemente faça-a rodar. Um outro tempo começa, perdem as árvores as folhas, os barcos voam, como um leque enche-se o tempo de si mesmo, dele brotam o ar, a brisa da terra, a sombra de uma mulher, o perfume do pão.
Quer mais alguma coisa? Aperte-o ao pulso, deixe-o correr em liberdade, imite-o sôfrego. O medo enferruja as rodas, tudo o que se poderia alcançar e foi esquecido vai corroer as velas do relógio, gangrenando o frio sangue dos seus pequenos rubis. E lá bem no fundo está a morte, se não corrermos e chegarmos antes para compreender que já não interessa nada.

Julio Cortázar

setembro 25, 2008

Anne Sexton






Quando o homem
entra na mulher,
como a onda mordendo a costa,
de novo e de novo,
e a mulher abre a boca de prazer
e seus dentes brilham
como o alfabeto,
Logos aparece ordenhando uma estrela,
e o homem
dentro da mulher
ata um nó
para que assim
nunca mais estejam separados
e a mulher
trepa numa flor
e engole seu talo
e Logos aparece
e desencadeia seus rios.
Este homem,
esta mulher
com sua dupla fome,
têm procurado penetrar
a cortina de Deus
e conseguem brevemente,
embora Deus
em Sua perversidade
desate o nó.

setembro 11, 2008

Pintava o Sete, Este Aí...


e.e. cummings "Mt. Chocorua." Oil on canvas. 1938.




na estrênua brevidade
vida:
realejos e abril
treva, amigos
eu me lanço rindo.
nas tintas fio-de-cabelo
da aurora amarela,
no ocaso colorido de mulheres

eu sorrisando
deslizo. eu
na grande viagem escarlate
nado, dizendomente;

(você sabe?) o
sim, mundo
é provavelmente feito
de rosas & alô:

(de atélogos e,cinzas)


e.e. cummings

Antes de partir...

mergulhar os pés em águas escuras, desconhecidas águas.
romper diques e cercas imperfeitas
colidir com o nada
abraçar-se ao tigre de veludo antes que o poeta o transmute em livro

sentir pelas pernas o sangue que transborda do coração insatisfeito
que
bate bate bate bate
em portas que ninguém abre
(pois não há mais ninguém ali)
coração este
que
apanha apanha apanha
em circuitos alternados de despedidas
(pois ninguém fica muito tempo por ali)

esculpir em aço a flor do desejo quase obsceno
no meio de tanta tragédia, de querer ainda e tanto
ser feliz e sorrir sem virar pelo avesso
o choro guardado anos a fio na garganta
que flerta com o outro fio
(da navalha)

travar toda a dor
num gole de um vinho que avinagrou
de esperar inútil em taça de vidro barato

(cristais estilhaçam no grito e era soprano aquela mulher)

sentir que pulou muito tarde do navio em chamas
e nem o mar
(o infinito aguaceiro ali na frente dos olhos que queimam)
poderá lavar esta alma
que traz ainda em si
a lembrança de nada, de tudo de todos os advérbios
temporais esquecidos

e por que não dizer agora que chegou ao fim
a tinta do bico-de-pena com que escrevo este epitáfio?

"alma esta que tatua em sua veste translúcida
a lembrança do amor que cresceu sem nascer"



albanegromonte

setembro 05, 2008

Light My Fire


cometo em ti os pecados todos
- sete que seriam,
mais vinte que invento só pra demorar a anistia divina


por um sorriso teu em meu dia,
eu passo um pente na juba do leão
corro mais que um guepardo
dou a luz a trezentos cavalos-marinhos
(fora da água)

e pra nunca sair do teu abraço
e continuar enlouquecendo cada vez mais em taças
de felicidade tinta que me ofereces a cada passo,
te escrevo em fogo fátuo
na lápide de uma anjo caído
ou na de um herói do rock que esqueceu de viver.
escrevo em teu nome
as sílabas do meu
e te digo mais e sempre
velejar no teu sonho
é gozar de viver.



albanegromonte

Sobre Perdoar

"Enquanto dormimos
a dor que não se dissipa
cai gota a gota sobre nosso coração
até que, em meio ao nosso desespero
e contra nossa vontade
apenas pela graça divina
vem a sabedoria"

Ésquilo