junho 26, 2008

O Grande Cronópio

Os Amantes



Quem os vê andar pela cidade
se todos estão cegos?
Eles se tomam as mãos: algo fala
entre seus dedos, línguas doces
lambem a úmida palma, correm pelas falanges,
e acima a noite está cheia de olhos.

São os amantes, sua ilha flutua à deriva
rumo a mortes na relva, rumo a portos
que se abrem nos lençóis.
Tudo se desordena por entre eles,
tudo encontra seu signo escamoteado;
porém eles nem mesmo sabem
que enquanto rodam em sua amarga arena
há uma pausa na criação do nada
o tigre é um jardim que brinca.

Amanhece nos caminhões de lixo,
começam a sair os cegos,
o ministério abre suas portas.
Os amantes cansados se fitam e se tocam
uma vez mais antes de haurir o dia.

Já estão vestidos, já se vão pela rua.
E só então,
quando estão mortos, quando estão vestidos,
é que a cidade os recupera hipócrita
e lhes impõe os seus deveres quotidianos.

Julio Cortazar

Do Ceará



Diluvia



Chove em São Paulo.

Como tem sido, mesmo não fosse verão, São Paulo envelhece a contas de chuva. Se estas águas são de fevereiro o quê dirão as de março. Chove muito em São Paulo.

Arregaço a boca da perna da calça. Arregaço o botão do peito. Que horas são?...

Horas pra quê se chove em São Paulo!

O rio agora que te ouviu

e vem vindo grande e sujo lavar teus pés.

Diluvia...

Lá se vai um par de botinas com ratinhos marinheiros pestilentos

Descendo as ruas

Despencando no cobertor de lama

Lá se vão flores roxas e girassóis e cachorrinhos quentes sem madames

Passa boi, boiada e as caravelinhas de lata, milhões delas, com famílias,

Executivos, estudantes cabulados, sogras, servos do prefeito, o amante e a casada,

Os operários alagados, a classe média deslavada...

Todas navegando em dia de rodízio sobre a água que cai em gota e sobe em larva.

Essa cidade meus senhores nem vos conto!

Chove em São Paulo.

Eu corro pequeno dando saltos nas calçadas

Desviando das pedras de gelo,

Dos guarda-chuvas quebrados, dos mosaicos pichados,

Foram mendigos que passaram por nós

E mergulharam nos bueiros?...

Da lama que sobe meus irmãos, pois chove a dias.

Não deve ter sido

Mendigos não cabem em bueiros.

As marginais desmarginaram.

O que há de ser salvo, diluvia.

O que há de ser correria, diluvia.

Diluvia rombos públicos, bancos públicos, violência pública.

Estado privado. Saúde privada. Comida privada.

Diluvia lama do suor das moedas, da tintura das cédulas

Diluvia.

Meu Deus, vê-se das casas grandes

As casas pobres descendo a rios.

Os cofres, meus irmãos, ficam no alto

As rachaduras no céu vazam

Diluvia ira ínfima do cheiro da carne humana no fim do dia

Diluvia Anhangabaú

Senhores, a República afundou!

Gero Camilo

Do Rio


O Homem Público

Tarde aprendi
bom mesmo
é dar a alma como lavada.
Não há razão
para conservar
este fiapo de noite velha.
Que significa isso?
Há uma fita
que vai sendo cortada
deixando uma sombra
no papel.
Discursos detonam.
Não sou eu que estou ali
de roupa escura
sorrindo ou fingindo
ouvir.
No entanto
também escrevi coisas assim,
para pessoas que nem sei mais
quem são,
de uma doçura
venenosa
de tão funda.

Ana Cristina César

junho 19, 2008

Dispersão


Perdi-me dentro de mim
Porque eu era labirinto,
E hoje, quando me sinto,
É com saudades de mim.

Passei pela minha vida
Um astro doido a sonhar.
Na ânsia de ultrapassar,
Nem dei pela minha vida... (...)

Desceu-me n'alma o crepúsculo;
Eu fui alguém que passou.
Serei, mas já não me sou;
Não vivo, durmo o crepúsculo.

Mário Sá-Carneiro

junho 12, 2008

Canção Para Ele



Sim, eu também recomeço a cada dia destes que vivemos, a nossa história de ontem que
perdura em cada olhar que me dás.
Sempre amor, e aquela coisa toda.



Começaria tudo outra vez
Se preciso fosse, meu amor
A chama em meu peito
Ainda queima, saiba!
Nada foi em vão...

A cuba-libre dá coragem
Em minhas mãos
A dama de lilás
Me machucando o coração
Na sede de sentir
Seu corpo inteiro
Coladinho ao meu...

E então eu cantaria
A noite inteira
Como já cantei, cantarei
As coisas todas que já tive
Tenho e sei, um dia terei...

A fé no que virá
E a alegria de poder
Olhar prá trás
E ver que voltaria com você
De novo, viver
Nesse imenso salão...

Ao som desse bolero
Vida, vamos nós
E não estamos sós
Veja meu bem
A orquestra nos espera
Por favor!
Mais uma vez, recomeçar...

Gonzaguinha

junho 05, 2008

H Dobal


Silencioso
Solitário
Sinistro
Um sol-poente
Celebra o suicídio da tarde.

De Os Signos e as Siglas (1987)