julho 03, 2009

Homenagem tardia, mas...


Persecuta



Como em tantos e tantos de seus pesadelos, começou a fugir, apavorado. As botas dos perseguidores soavam e ressoavam sobre as folhas secas. As onipotentes passadas se aproximavam, num ritmo enlouquecido e enlouquecedor. Há não muito tempo, sempre que entrava num pesadelo, sua salvação consistia em despertar, mas a esta altura os perseguidores haviam aprendido o truque e já não se deixavam enganar. Contudo, desta vez voltou a surpreendê-los. No exato instante em que os sabujos acharam que ia despertar, ele, simplesmente, sonhou que dormia.

Mario Benedetti, tradução de Yara Camillo (autora dos livros de contos Hiatos (RG Editores, 2004) e Volições (Massao Ohno, 2007), além de tradutora, dramaturga e diretora de teatro).

julho 02, 2009

Mais Ou Menos Isso...


E por fim chega uma altura em que uma pessoa pergunta: "que raio fiz eu?"(…)
Grande parte da vida é tão chata que nem merece discussão, e é chata em todas as idades. Quando mudamos de marca de cigarro, nos mudamos para um novo bairro, assinamos um novo jornal, nos apaixonamos e desapaixonamos, estamos a protestar, de modos ao mesmo tempo frívolos e profundos, contra a maçada que nunca se dissolve da vida de todos os dias. Infelizmente, um espelho é tão traiçoeiro quanto outro, e a dado momento reflecte em cada aventura o mesmo rosto insatisfeito, então quando ela pergunta que raio fiz eu?, na verdade quer dizer o que é que eu estou a fazer?, que é o que habitualmente se diz.





Truman Capote

Cravo (I)


acorda em minha carne o fantasma boquiaberto das infinitas tristezas de um dia, com tanto brilho que há em tudo que se desprende da minha alma em paz.
acorda e em silêncio, gravita em torno do arco-íris, cobrindo com suas asas de lágrimas, os arcos de riso, os parenteses das faces que me viam até então.
acorda, saca a adaga dos males e das inquietudes que pairavam em palavras não rifadas, em solos de silêncio tão absoluto que nem a mais linda das canções que ouvi, consegue rasgar.
a corda acorda.
e na parede do meu sonho esparso, vejo o nó que se engata aos poucos
cerzindo as feridas abertas do peito sustenido e assustado.
nó que aperta, que abafa que ruge arranhando a pele que já
não consegue conter o nervo, o músculo o sangue...
incontida eu
choro em viva carne.
e o fantasma não mais boquiaberto se volta para a profundeza de mim
prometendo voltar.

albanegromonte

A Tela, O Filme






"Tão longe estamos do mundo que não tarda que comecemos a não saber quem somos, nem nos lembrámos sequer de dizer-nos como nos chamamos, e para quê, para que iriam servir- nos os nomes, nenhum cão reconhece outro cão, ou se lhe dá a conhecer, pelos nomes que lhes foram postos, é pelo cheiro que identifica e se dá a identificar, nós aqui somos como uma outra raça de cães, conhecemo- nos pelo ladrar, pelo falar, o resto, feições, cor dos olhos, da pele, do cabelo, não conta, é como se não existisse, eu ainda vejo, mas até quando".

José Saramago in Ensaio Sobre A Cegueira

Foto do Estadão, no set de filmagem de Blindness (Fernando Meireles), em cena que evoca Brueguel.

Traduzir É Arte


Uma palavra morre

Quando falada

Alguém dizia.

Eu digo que ela nasce

Exatamente

Nesse dia.






A word is dead

When it is said,

Some say.

I say it just

Begins to live

That day.







Emily Dickinson, tradução de Idelma Ribeiro de Faria