abril 27, 2008

Nesta Noite

pois sim.
em ti, homem, é que deságuo e tudo o mais.
em teus braços sou, quase todos os instantes, pois há aqueles em que respiro.
sou tua e sempre.
meu olhar te cabe, te enlaça e prende.
são arrebóis, são sóis.
são nuvens, cargas de amor que se insinuam em trovões, ou em passos de dragão sem asas.
eu sei.
e não poderia em tempo outro pois era tão menina e tu, ainda eras também menino.
envoltos em brumas e coisas do verdume da idade, nos perdemos e.
fomos assim, de erro em erro, a esquecermos o que mais prometemos em cartas que nunca foram guardadas.
(mas em meu diário, há palavra sagrada que diz: era/é/será. tu!)
tempo que se foi e que nos roubou o ser feliz inteiro.
fomos nós]pedras que rolaram montanha acima, Sisífos de destino que era nosso.
pedras que rolaram sobre nossos sonhos, mas.
agora que eu e tu somos em carne, em pele e em sonhos, ainda que tardios.
és meu e eu
que dizer do que sempre fui e não sabia.
tua.
flor amarela, flor desta tão longa espera.
aqui assim. eu.
teu de sempre eternamente amor.
menina que ainda mora nos teus olhos de lembrar.
madura sim. fruta que cai sobre tua boca que anseia e diz:
minha.
sim, sou.
me toma
me leva
me morde a alma, ou o lábio que te implora e clama.
assume
carrega em cestas de vime
em teu coração caçador que agora em paz se sabe.
és meu e eu tua.
sem que ninguém testemunhe ou diga amém.
sabemos nós, e sim seremos para todo o sempre e mais.

albanegromonte

abril 24, 2008

Para o Zé

Eu te amo, homem, hoje como
toda vida quis e não sabia,
eu que já amava de extremoso amor
o peixe, a mala velha, o papel de seda e os riscos
de bordado, onde tem
o desenho cômico de um peixe — os
lábios carnudos como os de uma negra.
Divago, quando o que quero é só dizer
te amo. Teço as curvas, as mistas
e as quebradas, industriosa como abelha,
alegrinha como florinha amarela, desejando
as finuras, violoncelo, violino, menestrel
e fazendo o que sei, o ouvido no teu peito
pra escutar o que bate. Eu te amo, homem, amo
o teu coração, o que é, a carne de que é feito,
amo sua matéria, fauna e flora,
seu poder de perecer, as aparas de tuas unhas
perdidas nas casas que habitamos, os fios
de tua barba. Esmero. Pego tua mão, me afasto, viajo
pra ter saudade, me calo, falo em latim pra requintar meu gosto:
“Dize-me, ó amado da minha alma, onde apascentas
o teu gado, onde repousas ao meio-dia, para que eu não
ande vagueando atrás dos rebanhos de teus companheiros”.
Aprendo. Te aprendo, homem. O que a memória ama
fica eterno. Te amo com a memória, imperecível.
Te alinho junto das coisas que falam
uma coisa só: Deus é amor. Você me espicaça como
o desenho do peixe da guarnição de cozinha, você me guarnece,
tira de mim o ar desnudo, me faz bonita
de olhar-me, me dá uma tarefa, me emprega,
me dá um filho, comida, enche minhas mãos.
Eu te amo, homem, exatamente como amo o que
acontece quando escuto oboé. Meu coração vai desdobrando
os panos, se alargando aquecido, dando
a volta ao mundo, estalando os dedos pra pessoa e bicho.
Amo até a barata, quando descubro que assim te amo,
o que não queria dizer amo também, o piolho. Assim,
te amo do modo mais natural, vero-romântico,
homem meu, particular homem universal.
Tudo que não é mulher está em ti, maravilha.
Como grande senhora vou te amar, os alvos linhos,
a luz na cabeceira, o abajur de prata;
como criada ama, vou te amar, o delicioso amor:
com água tépida, toalha seca e sabonete cheiroso,
me abaixo e lavo teus pés, o dorso e a planta deles
eu beijo.

Adélia Prado

abril 17, 2008

Soneto Do Desmantelo Azul


Então, pintei de azul os meus sapatos
por não poder de azul pintar as ruas,
depois, vesti meus gestos insensatos
e colori as minhas mãos e as tuas,

Para extinguir em nós o azul ausente
e aprisionar no azul as coisas gratas,
enfim, nós derramamos simplesmente
azul sobre os vestidos e as gravatas.

E afogados em nós, nem nos lembramos
que no excesso que havia em nosso espaço
pudesse haver de azul também cansaço.

E perdidos de azul nos contemplamos
e vimos que entre nós nascia um sul
vertiginosamente azul. Azul.

Carlos Pena Filho

abril 11, 2008

Stacatto


mais uma noite vã.
estrelas tantas que nem conto
se jogam cadentes no céu da minha janela.
quase posso te ver
através da lembrança do pouco ou nada que resta
de ti
na minha memória.
quadro a quadro vou decifrando
o teu enigma
na minha vida abandonada ao senhores do Tempo e do Esquecimento
percebendo a cada linha
desescrita
que me afastas do teu coração ateu
e o meu, que quase acreditou, vai ficando murcho
e frio
que nem violeta exposta ao impossível.
sinto pelo que nunca pude te dizer
quando me calavas com escorregos e desvios
que confundiam minha narrativa
deste querer que já nasceu morto
e enquanto mais uma noite vã se distrai
e ri da minha lendária insônia
visto o perfume que deixei no teu travesseiro
e atravesso o Mar bem na minha frente
me atirando no Infinito da minha paz
que será um dia
quando conseguir te esquecer

albanegromonte

abril 04, 2008

Manoel



No descomeço era o verbo
Só depois é que veio o delírio do verbo.
O delírio do verbo estava no começo, lá onde a
criança diz: Eu escuto a cor dos passarinhos.
A criança não sabe que o verbo escutar não funciona
para cor, mas para som.
Então se a criança muda a função de um verbo, ele
delira.
E pois.
Em poesia que é voz de poeta, que á a voz de fazer
nascimentos-
O verbo tem que pegar delírio.

Manoel de Barros

LisPector




Para além da orelha existe um som, à extremidade do olhar um aspecto, às pontas dos dedos um objeto - é para lá que eu vou.
À ponta do lápis o traço.
Onde expira um pensamento está uma idéia, ao derradeiro hálito de alegria uma outra alegria, à ponta da espada a magia - é para lá que eu vou.
Na ponta dos pés o salto.
Parece a história de alguém que foi e não voltou - é para lá que eu vou.
Ou não vou? Vou, sim. E volto para ver como estão as coisas. Se continuam mágicas. Realidade? eu vos espero. E para lá que eu vou.
Na ponta da palavra está a palavra. Quero usar a palavra "tertúlia" e não sei aonde e quando. À beira da tertúlia está a família. À beira da família estou eu. À beira de eu estou mim. É para mim que eu vou. E de mim saio para ver. Ver o quê? ver o que existe. Depois de morta é para a realidade que vou. Por enquanto é sonho. Sonho fatídico. Mas depois - depois tudo é real. E a alma livre procura um canto para se acomodar. Mim é um eu que anuncio.
Não sei sobre o que estou falando. Estou falando de nada. Eu sou nada. Depois de morta engrandecerei e me espalharei, e alguém dirá com amor meu nome.
É para o meu pobre nome que vou.
E de lá volto para chamar o nome do ser amado e dos filhos. Eles me responderão. Enfim terei uma resposta. Que resposta? a do amor. Amor: eu vos amo tanto. Eu amo o amor. O amor é vermelho. O ciúme é verde. Meus olhos são verdes. Mas são verdes tão escuros que na fotografia saem negros. Meu segredo é ter os olhos verdes e ninguém saber.
À extremidade de mim estou eu. Eu, implorante, eu a que necessita, a que pede, a que chora, a que se lamenta. Mas a que canta. A que diz palavras. Palavras ao vento? que importa, os ventos as trazem de novo e eu as possuo.
Eu à beira do vento. O morro dos ventos uivantes me chama. Vou, bruxa que sou. E me transmuto.
Oh, cachorro, cadê tua alma? está à beira de teu corpo? Eu estou à beira de meu corpo. E feneço lentamente.
Que estou eu a dizer? Estou dizendo amor. E à beira do amor estamos nós.


Clarice Lispector

Para Não Esquecer de Julio


Instruções para subir uma escada

Ninguém terá deixado de observar que frequentemente o chão se dobra de tal maneira que uma parte sobe em ângulo reto com o plano do chão, e logo a parte seguinte se coloca paralela a esse plano, para dar passagem a uma nova perpendicular, comportamento que se repete em espiral ou em linha quebrada até alturas extremamente variáveis. Abaixando-se e pondo a mão esquerda numa das partes verticais, e a direita na horizontal correspondente, fica-se na posse momentânea de um degrau ou escalão. Cada um desses degraus, formados, como se vê, por dois elementos, situa-se um pouco mais acima e mais adiante do anterior, princípio que dá sentido à escada, já que qualquer outra combinação produziria formas talvez mais bonitas ou pitorescas, mas incapazes de transportar as pessoas do térreo ao primeiro andar.

As escadas se sobem de frente, pois de costas ou de lado tornam-se particularmente incômodas. A atitude natural consiste em manter-se em pé, os braços dependurados sem esforço, a cabeça erguida, embora não tanto que os olhos deixem de ver os degraus imediatamente superiores ao que se está pisando, a respiração lenta e regular. Para subir uma escada começa-se por levantar aquela parte do corpo situada embaixo à direita, quase sempre envolvida em couro ou camurça, e que salvo algumas exceções cabe exatamente no degrau. Colocando no primeiro degrau essa parte, que para simplificar chamaremos de pé, recolhe-se a parte correspondente do lado esquerdo (também chamada pé, mas que não se deve confundir com o pé já mencionado), e levando-se à altura do pé faz-se que ela continue até colocá-la no segundo degrau, com o que neste descansará o pé, e no primeiro descansará o pé. (Os primeiros degraus são os mais difíceis, até se adquirir a coordenação necessária. A coincidência de nomes entre o pé e o pé torna difícil a explicação. Deve-se ter um cuidado especial em não levantar ao mesmo tempo o pé e o pé.)

Chegando dessa maneira ao segundo degrau, será suficiente repetir alternadamente os movimentos até chegar ao fim da escada. Pode-se sair dela com facilidade, com um ligeiro golpe de calcanhar que a fixa em seu lugar, do qual não se moverá até o momento da descida.



Julio Cortázar

DesfiguRado e.

e de que me adiantariam rosas? se delas nem sei perfume ou cor... ainda que, não seria de ti exatamente, que gostaria de receber. mas. sei que em naufragios de mares desconhecidos, eu renascida vigoro em ondas ou chamas que surtem efeitos em caleidoscópios ou máscaras, que dançam entre nuvens de palavras e letras que se confundem nas páginas brancas do livro que comecei a ler.
e não é teu rosto que vislumbro agora através da janela, através da cortina que em pó se regride e atinge em pontas e farpas de precipícios, avisos que tive de não! nunca mais seguir caminho de coração que bate, que teima em ser algo assim de moleza, de rendição ao que sempre foi e sempre será: amor que não se deixa vencer pelos equinócios, pelas estrelas doidas que roçam as paralelas de um universo que hoje eu sei, fulguram na vela vermelha que a cigana acendeu em noite redonda que se assemelhava a um bosque. e havia a pérola no lábio inerte do dragão que ressonava abaixo e acima do meu leito, folha de seda e cetim amarelo que se misturava à s fumaças e nevoeiros que eram um não sei que de lentidão.
hoje eu sei que através dos mil e duzentos megatons de força em, estará tu, frase de língua francesa ou em latim que nunca.
página minha de livro santo que se transforma em infértil que nem meu ventre ou vontade de ser o que nunca fui.
letrista que me conta em lenda antiga o segredo de me livrar pesadelo que havia em dias e noites que se amontoavam em florestas e rios que desaguavam em canos de vielas antigas e sem cor.
tu és.
e sibilos de rosa desfolhando se instaura na noite que se inicia em taças de vinho tinto
que se derrama
que se estraga
sobre a minha camisa tão branca que impune se diz
-imperfeita!
e és tu, aquele que procuro desde o caos quando não o era e assim
mas tu estás e sempre brilharás estrela em meu céu e quando
eu
tu
ou não
talvez quam sabe entendas e responda em língua estrangeira, ou palavra de outro poeta que nem vi ou escutei.
meu manto revela minha face
nada é mais do que eu.
aquela por quem sempre procuraste.
unha de dragão destruído ou apagado
por pérola que pequenina se mostrou em palavra
que.
tu és.
E.


albanegromonte

Caminhos No Espelho



E sobretudo olhar com incidência. Como se nada se passasse, o que é certo.Mas a ti quero olhar-te até estares longe do meu medo, como um pássaro no limite afiado da noite.Como uma menina de giz cor-de-rosa num muro muito velho subitamente esbatido pela chuva.Como quando se abre uma flor e se revela o coração que não tem.Todos os gestos do meu corpo e voz para fazer de mim a oferenda, o ramo que o vento abandona no umbral.Cobre a memória da tua cara com a máscara daquela que serás e afugenta a menina que foste.A nossa noite dispersou-se com a neblina. É a estação dos alimentos fritosE a sede, a minha memória é de sede, eu em baixo, no fundo, no poço, bebia, recordo.Cair como um animal ferido no lugar de hipotéticas revelações.Como quem não quer a coisa. Nenhuma coisa. Boca cosida. Pálpebras cosidas. Esqueci-me. Dentro o vento. Tudo fechado e o vento dentro.Sob o negro sol do silêncio douravam-se as palavras.Mas o silêncio é certo. Por isso escrevo. Estou só e escrevo. Não, não estou só. Ha alguem aqui que treme.Ainda que diga sol e lua e estrelas refiro-me a coisas que me acontecem.E o que desejava eu?Desejava um silêncio perfeitoPor isso falo.A noite parece um grito de lobo.Delícia de perder-se na imagem pressentida. Levantei-me do meu cadáver, fui á procura de quem sou. Peregrina, avancei em direcção àquela que dorme num país ao vento.A minha queda sem fim na minha queda sem fim onde inguém me esperava pois ao descobrir quem me esperava outra não vi senão a mim mesma.Algo cai no silêncio. A minha palavra foi eu embora me referisse à aurora luminosa.Flores amarelas constelam um círculo de terra azul. A água treme cheia de vento.Deslumbramento do dia, pássaros na manhã. Uma mão desata as trevas, arasta a cabeleira da afogada que não cessa de passar pelo espelho. Volto à memória do corpo, hei-de regressar aos meus ossos de luto, hei-de compreender o que a minha voz diz.

Alejandra Pizarnik

abril 03, 2008

Mea Culpa



Venus in the mirror, Diego Velasquez


um dia acreditei nas palavras que se amontoavam nos papéis à minha frente, e chamei de Poesia. encantada e desavisada, fui vivendo por aí, versos soltos em linhas de todos os sentimentos que me cabiam neste Tempo de existir. dragões, sereias, prostitutas,centauros, vampira, Eva, beija-flor, arcos&lírios, tatuagem, loucura, dor, paixão que doía, paixão que fazia tanto bem fora da dor, mendigo, Pessoa, gatos, Bandeira, ursos caolhos, quadrilha, cio, desejo, fotografias, queixas, janelas, adagas, hibiscos, lótus, lamentos, pedidos, falhas, porquês, vinho tinto, sangue, cigarros, cigana, destino, beijos ditos, os cinco sentidos, os sete pecados, os três mosqueteiros, os dez mandamentos, Dom Quixote, Alice, Clarice, desenho em giz no quadro negro da minha memória... palavras se colando caladas nas noites e nos dias que se iam, que se voltavam vez em quando sobre os ombros carregando o peso do mundo, remoendo passado morto, desenterrando ossos, negando certezas e semeando dúvidas. palavras que até em pedras jogadas na Lua, se transmutaram, quando eram de fato, anéis de planeta, bolha de sabão, vento sem cor a romper as cores todas da aurora que anuncia-se todos os dias em asas de anjo inquieto pelas frestas da minha janela...
noutro dia, me vendo no reflexo da vidraça, ela se apresentou.
de cor, relembrou tudo que eu nem lembrava ter escrito.
e depois, emocionada com tanto,
saiu do reflexo imaginado irreal, sentou-se a meu lado,
sussurrando como em prece...
Ricardo, Alberto, Bernardo...me ajudem nessa hora
- quanta ousadia, Fernando-
e de uma forma serena, esta mulher me tomou as mãos,
espalhou um grande sorriso azul
que caiu como uma luva sobre tudo que eu era,
e disse...
- acabou.
foi então neste outro dia, que eu descobri quem era de fato o personagem criado.
alter-ego, persona, heterônimo...
eu, sim, era quem morava do outro lado do espelho.
o negativo da foto.
a sombra.
a outra.
a que não tinha nome.
que não se conhecia, nem se sabia.
a que nunca nascera e que nunca morrerá.
neste outro dia, que agora se findava em lilás no outro lado da face
eu acreditei nesta verdade.
desde então não consigo mais poetar.

albanegromonte

Para Quem Sabe De Dores

revenant *

isso em mim
que hoje anseia partida
chamo de quase querer.
e é quase querendo
que salto do tigre que montava
liberto a ave azul que trazia no parapeito da janela
e deixo ir pro sul o sol morno que guardava no bolso da blusa- para aquecer o lado esquerdo do peito
onde havia um coração
e hoje mora um pequeno esquimó com seu pinguim de estimação.

atravesso a rua sem olhar o sinal
carro de vidros abertos
portas sem chaves
janelas sem proteção
fios elétricos desencapados.

meu revolver tem oito balas. seis no tambor e duas na minha mão
meu armário, sessenta e três comprimidos aditivados
minha gaveta, vinte e duas facas
minha bolsa, dois canivetes
mas não uso echarpes, não tenho forno a gás, não moro num nono andar em Copacabana, nenhum rio passa atrás da minha casa
ando às vezes na beira-mar, catando estrelas
vestindo um pijama e com um relógio de ouro no pulso esquerdo pra não me perder
no abismo que a Rainha das Águas cria em noites escuras

tenho medo de cachorros pequenos
mas crio um dragão embaixo da cama.
toda noite antes de dormir
dou uma volta na via-láctea pra ele não entrevar as asas.
meu dragão tem olhos cor de violeta
e me deu um anel de prata que uso no anular do pé esquerdo.

não há flores nos meus jarros.
nem peixes nos meus aquários
e há tantos livros que não li
que chego a ter medo de morrer, ou ficar cega antes de conhecê-los

um dia sonhei que era uma magnólia
e me deitava na relva com o orvalho a me acariciar
foi numa noite esquisita,
em que tive sono e dormi
mas acordei gente
e ainda mais cansada das horas

trago uma cruz de pedras no umbigo
e comprei um Fenix colorido
que vai morar na minha nuca

tem dias que parecem inverdade
de tão tristonhos e escuros
nestes dias
eu ergo uma taça de vinho
brindo a todos os enganos que tive
releio um poema de Bandeira
folheio Cortazar
acendo um cigarro
e espero a dor passar.

a dor nunca me criou morada.
disso eu sempre soube, mas não dizia.
aranhas não cabem neste coração marcado, mas guerreiro.

albanegromonte

*revenant: termo francês, sem correlato em português, que significa "aquele que está de volta", "aquele que volta da morte"

Fragmento De





Sou duma antiga família de carvalhos, raça austera e forte - que já na Antiguidade deixava cair, dos seus ramos, pensamentos para Platão. Era uma família hospitaleira e histórica: dela tinham saído navios para a derrota tenebrosa das Índias, contos de lanças para os alucinados das Cruzadas, e vigas para os tetos simples e perfumados que abrigaram Savanarola, Espinosa e Lutero. Meu pai, esquecido das altas tradições sonoras e da sua heráldica vegetal, teve uma vida inerte, material e profana. Não respeitava as nobres morais antigas, nem a ideal tradição religiosa, nem os deveres da história. Era uma árvore materialista. Tinha sido pervertida pelos enciclopedistas da vegetação. Não tinha fé, nem alma, nem Deus! Tinha a religião do Sol, da seiva e da água. Era o grande libertino da floresta pensativa. No verão, enquanto sentia a fermentação violenta das seivas, cantava movendo-se ao sol, acolhia os grandes concertos de pássaros boêmios, cuspia a chuva sobre o povo curvado e humilde das ervas e das plantas e, de noite, enlaçado pelas heras lascivas, ressonava sob o silêncio sideral. Quando vinha o inverno, com a passividade animal dum mendigo, erguia, para a impassível ironia do azul, os seus braços magros e suplicantes!

Por isso nós, os seus filhos, não fomos felizes na vida vegetal. Um dos meus irmãos foi levado para ser tablado de palhaços; ramo contemplativo e romântico, ia, todas as noites, ser pisado pela chufa, pelo escárnio, pela farsa e pela fome! O outro ramo, cheio de vida, de sol, de poeira, áspero solitário da vida, lutador dos ventos e das neves, forte e trabalhador, foi arrancado dentre nós para ir ser tábua de esquife! - Eu, o mais lastimável, vim a ser forca!


Eça de Queiroz, em "Prosas Bárbaras".

La Dicha








O que abraça a uma mulher é Adão. A mulher é Eva.
Tudo acontece por primeira vez.
Hei visto uma coisa branca no céu. Dizem-me que é a lua,
mas
que posso fazer com uma palavra e com uma mitologia.
As árvores me dão um pouco de medo. São tão formosas.
Os tranqüilos animais se aproximam para que eu lhes diga seu
nome.
Os livros da biblioteca não têm letras. Quando os abro
surgem.
Ao folhear o atlas projeto a forma de Sumatra.
O que ascende um fósforo no escuro está inventando o
fogo.
No espelho há outro que está à espreita.
O que olha o mar vê à Inglaterra.
O que profere um verso de Liliencron há entrado na
batalha.
Hei sonhado a Cartago e as legiões que desolaram a
Cartago.
Hei sonhado a espada e a balança.
Louvado seja o amor no qual não há possuidor nem possuída,
mas os dois se entregam.
Louvado seja o pesadelo, que nos revela que podemos criar o
inferno.
O que descende a um rio descende ao Ganges.
O que olha um relógio de areia vê a dissolução de um império.
O que joga com um punhal pressagia a morte de César.
O que dorme é todos os homens.
No deserto vi a jovem Esfinge que acabam de lavrar.
Nada há tão antigo abaixo do sol.
Tudo acontece por primeira vez, mas de um modo eterno.
O que lê minhas palavras está inventando-as.

Jorge Luis Borges

Lágrima De Cronopio



NURIN JAZLIN

MURDERED. 9 YEARS OLD. WHY? ARE WE HUMAN?
.
TO AVOID SUCH A TRAGEDY HAPPENING AGAIN, AND FOR THE SALVATION OF OUR CHILDREN, WE ARE DOING A WORLDWIDE CAMPAIGN, DISPLAYING THE IMAGE OF NURIN JAZLIN JAZIMIN IN BLOGS ALL OVER THE WORLD ON 25TH APRIL 2008. LET'S NOT FORGET NURIN JAZLIN.

Da França



Aquele que olha, da rua, através de uma janela aberta, jamais vê tantas coisas como quem olha para uma janela fechada. Nada existe mais profundo, mais misterioso, mais fecundo, mais tenebroso, mais deslumbrante, que uma janela iluminada por uma lamparina. O que se pode ver ao sol nunca é tão interessante como o que acontece por trás de uma vidraça. Naquele quartinho negro ou luminoso a vida palpita, a vida sonha, a vida sofre.
Para além das ondas de telhados, diviso uma mulher já madura, enrugada, pobre, sempre debruçada sobre alguma coisa, e que nunca sai de casa. Pela sua fisionomia, pelas suas vestes, por um gesto seu, por um quase-nada, reconstituí a história dessa mulher, ou antes, a sua lenda, que às vezes conto a mim próprio, a chorar.
Se fosse um pobre velho, eu lhe haveria reconstituído a história com a mesma facilidade.
E vou-me deitar, orgulhoso de ter vivido e sofrido em outras criaturas.
Haveis de perguntar-me agora: -- "Estás certo de que essa história seja a verdadeira?" Que importa o que venha a ser a realidade colocada fora de mim, se ela me ajudou a viver, a sentir que sou, e o que sou?

Charles Baudelaire, "As Janelas".

Bilhete





É melhor,

apesar dos vermes falando

com os cascos da égua no campo;

é melhor,

apesar do período das moças

pingando seu sangue;

é melhor de algum jeito

eu me jogar rápido

num velho quarto.

É melhor (alguém disse)

não nascer

é melhor ainda

não nascer duas vezes

aos treze

onde o colégio interno,

cada ano um quarto,

pegou fogo.

Querido amigo,

Vou ter que afundar com centenas de outros

num elevador de pratos para o inferno.

Vou ser uma coisa leve.

Vou entrar na morte

como a lente de aumento perdida de alguém.

A vida está meio aumentada.

Os peixes e as corujas estão raivosos hoje.

A vida balança pra frente e pra trás.

Nem as vespas conseguem achar meus olhos.

Sim,

olhos que já foram imediatos

olhos que já foram despertos de verdade,

olhos que contavam a história toda

pobres animais burros.

Olhos que foram vazados,

cabecinhas de prego,

tiros azul-claro.

E uma vez com a boca

como uma xícara,

cor de argila ou cor de sangue,

abriam como uma barragem

para o oceano perdido

e abriam como a forca

para a primeira cabeça.

Uma vez

minha fome era de Jesus.

Ah minha fome! Minha fome!

Antes de ficar velho

ele andou calmamente por Jerusalém

procurando a morte.

Desta vez

com certeza

não peço compreensão

e ainda espero que todos os outros

se voltem quando um peixe não-treinado pular

na superfície do Lago Echo;

quando o luar,

sua nota grave elevada,

ferir algum prédio em Boston,

quando os belos de verdade jazerem juntos.

Eu penso nisso, claro,

e pensaria nisso muito mais

se não estivesse... se não estivesse

naquele velho fogo.

Eu poderia admitir

que sou só uma covarde

choramingando eu eu eu

sem mencionar as mosquinhas, as traças,

obrigadas pelas circunstâncias

a chupar a lâmpada.

Mas certamente você sabe que todo mundo tem uma morte,

sua própria morte,

esperando.

Então vou agora,

sem doença ou velhice,

descontrolada mas precisa,

sabendo minha melhor rota,

andando naquele burro de brinquedo que montei esses anos todos,

sem jamais perguntar “Pra onde vamos?”

Nós íamos (ah, se eu soubesse)

Pra isso.

Querido amigo,

por favor não pense

que eu visualizo guitarras tocando

ou meu pai arqueando seu osso.

Não espero nem a boca da minha mãe.

Eu sei que já morri antes _

uma vez em Novembro, outra em Junho.

Que estranho escolher Junho de novo,

tão concreto com seus peitos e ventres verdes.

Claro que as guitarras não vão tocar!

As cobras certamente não notarão.

Nova York não vai ligar.

À noite, os morcegos vão bater nas árvores,

sabendo de tudo,

vendo o que sentiram o dia todo.

Anne Sexton

Sobre Musas


Tu és a relação entre o poeta e Deus.

Tu prefiguras a imagem do Eterno

Porque a todo o instante organizas o mundo,

Sem ti minha poesia se extinguirá

Sem ti eu ficaria mirando as construções do tempo.



Murilo Mendes,

pAlavRa dE miM

sOmbras
EspAços inacabados em meus dias e noites
que se refazeM como sE eu nãO já esTivessE
quAse moRta
raiO de sol aCorda Minhas peRnas,
anTes que meu sonhO se acabe
e nunca Mais conSegui tua boCa na minHa tão junto
que nãO seJa nestes sonHares impoStos pelo canSaço de viVer em vãO
acorDa o relóGio, o teLefonE, a faXineira
e eu Me enrosCo serPente
noS lençóiS sem teu cHeiro que jÁ nEm sei a coR
se é qUe houve cor qualquer num OutubRo frio
que arDe ainda no fogo sAgrado destA alma que choRa tuA
auSência, tUa quase pResenÇa
teu diZer coisa sem neXo
a me enTontecer de deseJo
carne minha tâo tensa e ceGa
segue roLando ladeira aCima
que nem O outro contOu no InferNo que sonhou- oU conheceu- qUem saBerá?
não teNho noMe de flOr
nãO sou suaVe, nem sei dançaR.
dizem de mim, oS que se pensaM
que sOu vítiMa da oBsessão do aMor
amoR que nuncA vem
amOr que semprE vai e me deixA
sem somBra alGuma nuM deserTo maior que o SAAra
alma tRôpega, taciturna, Silenciosa alMa qUe caRRega meu corPo
que agorA é teu, taManha a marca que cravAste em ferro fogo&luZ
e Se não possO te beijaR
nem jaMais diZer que te AMo
rastrEio naS estrelas de nóS dois que às veZes me entram
pela fresta Da jAnela que eteRnamente fechadA
um Poema de naDa
uM dizer iNsano
um Qualquer imperfeitO verbo
prA tradUzir a ti,
a perDa
a Pena
por nãO me coNheceR

albanegromonte

Ferida



e o que de resto ficou meu caro...
foi este quê de coisa tua, que trago gravado na carne
e que dói, feito ferida recente
quando olho pro lado
e é de ti que vem a brisa do pensamento veloz.
ficou um tanto na casa,
e mais tudo no meu peito.
ficou a cópia da chave do meu encanto...
uma camisa que dobra e esconde meu coração,
uma lembrança que não me deixa continuar
uma canção que não consigo esquecer.
o que de resto ficou,
foi em mim.
e na estrada toda ali em frente
de nada me vale este desencanto, este coração faltando um pedaço, esta canção sem notas
então vou ficando.
o teu desamor me fita por dentro
me acossa
me reptiliza.
e não há paz neste mundo para um coração
que esqueceu suas asas em outro
e que por isso rasteja
pelas noites infames e informes que vão e vêm
no balanço da eternidade por onde gravita
um grande amor

albanegromonte

abril 02, 2008

Caetano, Olavo e A Língua Pátria...




Língua



Gosto de sentir a minha língua roçar
A língua de Luís de Camões
Gosto de ser e de estar
E quero me dedicar
A criar confusões de prosódias
E uma profusão de paródias
Que encurtem dores
E furtem cores como camaleões
Gosto do Pessoa na pessoa
Da rosa no Rosa
E sei que a poesia está para a prosa
Assim como o amor está para a amizade
E quem há de negar que esta lhe é superior
E deixa os portugais morrerem à míngua
"Minha pátria é minha língua"
Fala Mangueira!
Flor do Lácio Sambódromo
Lusamérica latim em pó
O que quer
O que pode
Esta língua?
Vamos atentar para a sintaxe dos paulistas
E o falso inglês relax dos surfistas
Sejamos imperialistas
Vamos na velô da dicção choo choo de
Carmen Miranda
E que o Chico Buarque de Holanda nos resgate
E - xeque-mate - explique-nos Luanda
Ouçamos com atenção os deles e os delas da
TV Globo
Sejamos o lobo do lobo do homen
Adoro nomes
Nomes em Ã
De coisas como Rã e Imã
Nomes de nomes
Como Scarlet Moon Chevalier
Glauco Matoso e Arrigo Barnabé e Maria da
Fé e Arrigo Barnabé
Flor do Lácio Sambódromo
Lusamérica latim em pó
O que quer
O que pode
Esta língua?
Incrível
É melhor fazer um canção
Está provado que só é possível
Filosofar em alemão
Se você tem uma idéia incrível
É melhor fazer um canção
Está provado que só é possível
Filosofar em alemão
Blitz quer dizer corísco
Hollyood quer dizer Azevedo
E o Recôncavo, e o Recôncavo, e o
Recôncavo
Meu medo!
A língua é minha pátria
E eu não tenho pátria: tenho mátria
E quero frátria
Poesia concreta e prosa caótica
Ótica futura
Samba -rap, chic-left com banana
Será que ela está no Pão de Açúcar?
Tá craude brô você e tu lhe amo
Qué queu te faço, nego?
Bote ligeiro
Nós canto-falamos como que inveja negros
Que sofrem horrores no gueto do Harlem
Lívros, discos, vídeos à mancheia
E deixe que digam, que pensem e que falem


Caetano Veloso




Língua Portuguesa



Última flor do Lácio, inculta e bela,
És, a um tempo, esplendor e sepultura:
Ouro nativo, que na ganga impura
A bruta mina entre os cascalhos vela...

Amo-te assim, desconhecida e obscura,
Tuba de alto clangor, lira singela,
Que tens o trom e o silvo da procela
E o arrolo da saudade e da ternura!

Amo o teu viço agreste e o teu aroma
De virgens selvas e de oceano largo!
Amo-te, ó rude e doloroso idioma,

Em que da voz materna ouvi: "meu filho!"
E em que Camões chorou, no exílio amargo,
O gênio sem ventura e o amor sem brilho!


Olavo Bilac

Era Eu Num Outro Dia




no peito um bem-querer de anjo
no corpo todos os diabos soltos.
algodão-doce no parque
absinto na cama.
olhares vazios em público
vagabundos na solidão a dois.
serpente
desejo
sexto pecado capital
cheiro de pele em visões modernistas
concretas em palavras e dizeres
que se olhar bem, nada dizem
veneno em taça de cristal
traindo um coração apaixonado
por um corpo insaciável
esperar pelo amor dentro do vestido de flores
catando o prazer nua na esquina de casa
e se for o destino
a costurar essa história
vai terminar do mesmo jeito
eu em você
você em mim
abraçados
até o fim chegar
ou o dia amanhecer.

albanegromonte