março 20, 2008

Dois Cronopios Para Um




Dom Quixote, pintura sobre
um bloco de madeira, de Armando Romanelli






Visitando os cronopios amigos, eis que reencontro no Non Liquet ( um escrito de Cervantes/Quixote(que rendeu o post anterior)
Veio-me à memória a primeira leitura desta aventura ímpar, que fiz por volta dos 10 anos.
Invadiu-me uma vontade de trazer um pouco desta figura que vive em cada um de nós, feito partícula do cosmos... (uma pesquisa em algum lugar, em algum tempo, diz que este livro é o segundo mais lido do mundo... ficando atrás do best-seller de sempre, A Bíblia).
Então convidei dois cronopios para dele falar: Carlos e Luís.
Os dois textos de Drummond vêm de "Quixote e Sancho, de Portinari", uma série de 21 poemas escritos com base em igual número de desenhos do pintor, criados em 1956. Os poemas apareceram no livro de Drummond Impurezas do Branco, de 1973, mas haviam saído antes
numa edição fora de comércio, junto com trechos de Cervantes e os desenhos de Portinari.
O soneto de Jorge Luis Borges, "Sueña Alonso Quijano",tem, mais ou menos, o mesmo assunto do poema XXI, de Drummond. O mestre argentino, como sempre, oculta nos versos um achado brilhante: "Foi o fidalgo um sonho de Cervantes / E Dom Quixote um sonho do fidalgo." Brilhante, não é mesmo?
Por fim, este post é dedicado a Djabal, pela alta voltagem que imprimiu em minha alma de cronopio, com seus comentários neste humilde blog; e pelo sempre espetáculo que é o seu Non Liquet (www.havesometea.net/NonLiquet/)




XI / DISQUISIÇÃO NA INSÔNIA

Que é loucura: ser cavaleiro andante
ou segui-lo como escudeiro?
De nós dois, quem o louco verdadeiro?
O que, acordado, sonha doidamente?
O que, mesmo vendado,
vê o real e segue o sonho
de um doido pelas bruxas embruxado?
Eis-me, talvez, o único maluco,
e me sabendo tal, sem grão de siso,
sou — que doideira — um louco de juízo.


XXI / ANTEFINAL NOTURNO

Dorme, Alonso Quejana.
Pelejaste mais do que a peleja
(e perdeste).
Amaste mais do que amor se deixa amar.
O ímpeto
o relento
a desmesura
fábulas que davam rumo ao sem-rumo
de tua vida levada a tapa
e a coice d'armas,
de que valeu o tudo desse nada?
Vilões discutem e brigam de braço
enquanto dormes.
Neutras estátuas de alimárias velam
a areia escura de teu sono
despido de todo encantamento.
Dorme, Alonso, andante
petrificado
cavaleiro-desengano.



Carlos Drummond de Andrade




SONHA ALONSO QUIJANO



Desperta aquele homem de um indistinto
Sonho de alfanjes e de campo chão,
Toca de leve a barba com a mão
Duvidando se está ferido ou extinto.
Não irão persegui-lo os feiticeiros
Que juraram seu mal por sob a lua?
Nada. O frio apenas. Apenas sua
Amargura nos anos derradeiros.
Foi o fidalgo um sonho de Cervantes
E Dom Quixote um sonho do fidalgo.
O duplo sonho os confunde e algo
Está ocorrendo que ocorreu muito antes.
Quijano dorme e sonha. Uma batalha:
Os mares de Lepanto e a metralha.

Jorge Luís Borges

2 comentários:

Unknown disse...

Sancho Pança (que, aliás, jamais andou se vangloriando disso) conseguiu, no decorrer dos anos, colecionando uma porção de romances de cavalaria e de bandoleiros, desviar, nas horas noturnas e soturnas, de tal modo de si o seu demônio (ao qual ele mais tarde deu o nome de Dom Quixote), que este passou então a executar desenfreada mente os feitos mais malucos, mas que, por falta de um objeto predeterminado (que era para ser justamente Sancho Pança), não prejudicavam ninguém. Sancho Pança, um homem livre, seguia sereno (talvez por certa sensação de irresponsabilidade) ao seu Dom Quixote em suas andanças, mantendo assim uma grande e proveitosa conversação até o fim de seus dias.
Franz Kafka.

Lady Cronopio disse...

Tremenda colaboração!
Que formidável teoria.
Beijos e aquela coisa toda.