março 26, 2008

Cronopio Convocado



Dizer Escuro


Tal Orfeu toco

nas cordas da vida a morte

e na beleza da terra

e dos teus olhos que mandam no céu,

só sei dizer escuro.



Não esqueças, que também tu, de repente,

naquela manhã, com a cama

ainda molhada de orvalho e o cravo

a dormir no coração,

viste o rio escuro

a passar por ti.



Com a corda silêncio

tensa na onda de sangue,

agarro o teu coração.

Tuas madeixas mudavam,

tornavam-se cabelos de sombra da noite,

flocos negros de treva

nevavam no teu rosto.



E eu não sou tua pertença.

Ambos nos queixamos já.



Mas tal Orfeu sei

na borda da morte a vida,

e azula-se-me

o teu olhar para sempre fechado.

Ingeborg Bachmann


25 de Junho de 1926, Klagenfurt, Austria - 17 de Outubro, 1973 Roma, Itália

Escritora, poeta e ensaísta austríaca.
Foi membro do Gruppe 47 - Grupo 47 do pós-guerra. A linguagem poética como possibilidade de iluminação, contra os horrores do mundo.
Com este ar blasé de estrela de cinema europeu, nem de longe, Ingeborg, parecia a profunda criatura que era, envolta em lembranças de atritos com o pai (fato que remete a Kafka na sua "Carta Ao Pai"), ao aspecto político-denunciador da sua obra, e aos temores íntimos que ensombreciam por vezes seu olhar.
Ingeborg por ironia do destino, ou como se queira denominar a força que torce os caminhos projetados, teve na sua morte por queimaduras, quando caiu com um cigarro aceso no banheiro e desmaiou, o desafio da dúvida. Pensaram os amigos: "Como?" Sim, ela poderia ter se acordado com a dor das queimaduras, não estivesse com alguns calmantes e alcool em sua corrente vital.
Assim é que nesta, como em tantas outras que passaram ou passarão, a Morte, a Loucura e sua confraria, aproxima-se assustadoramente da Arte.

PS: Propositalmente, escolhi um poema de amor para ilustração, pois é o lado menos divulgado da poeta

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