novembro 26, 2010

Um Achado



para Maat, que me estimula os achares e de quem  sempre espero a resposta.




Venho desta forma solicitar ao leitor 
uma cabeça de martelo 
para que por caridade 
me sejam arrancados das costas 
todos os pregos que o tempo aí me pregou 

Pregos para pendurar retratos 
talvez de coisas tristes 
talvez de coisas alegres 

Peço-lhe que o faça com extrema delicadeza 
de modo a que um dia 
me seja possível coçar as costas 
sem estar preocupado 
com crostas ou cicatrizes 

Venho pois caro leitor 
pedir-lhe depurada mestria 
ao arrancar-me todos os pregos 
que a vida me pregou nas costas 

Pregos veja-se bem 
que têm servido tão-somente 
para pendurar quadros 
talvez de naturezas mortas 
talvez de paisagens sem título 

Não leve a mal o pedido 
trata-se de caridade devida 
ou não fosse também o caro leitor 
um desses pregos 
que o destino me pregou nas costas 
com irrepreensível precisão 

Antoni Tàpies 

On The Rocks


pois é pela manhã que menos me sinto real.




quando amanhece,
eu salto as paredes do labirinto e abro as cortinas pro sol
quando amanhece, 
eu solto os cabelos, passo baton e corro pela casa de pijamas e sandálias prateadas, cantando canções de ninar
em ritmo de  blues gasoso, ou rock on the rocks
quando amanhece, 
eu adormeço meus pesadelos 
fecho as páginas do livro em branco
e desescrevo a dor de ser só.
quando amanhece
eu apago do espelho
as pegadas do tempo, o fio branco dos cabelos, o sulco de saudade no lábio e a vontade de voltar


quando amanhece
eu salto, abro, solto, passo, corro, canto, adormeço, fecho. desescrevo, apago, acordo e amanheço.


albanegromonte

novembro 25, 2010

Aos D´Além Mar



Devia morrer-se de outra maneira. 
Transformarmo-nos em fumo, por exemplo. 
Ou em nuvens. 
Quando nos sentíssemos cansados, fartos do mesmo sol 
a fingir de novo todas as manhãs, convocaríamos 
os amigos mais íntimos com um cartão de convite 
para o ritual do Grande Desfazer: "Fulano de tal comunica 
a V. Exa. que vai transformar-se em nuvem hoje 
às 9 horas. Traje de passeio". 
E então, solenemente, com passos de reter tempo, fatos 
escuros, olhos de lua de cerimônia, viríamos todos assistir 
a despedida. 
Apertos de mãos quentes. Ternura de calafrio. 
"Adeus! Adeus!" 
E, pouco a pouco, devagarinho, sem sofrimento, 
numa lassidão de arrancar raízes... 
(primeiro, os olhos... em seguida, os lábios... depois os cabelos... ) 
a carne, em vez de apodrecer, começaria a transfigurar-se 
em fumo... tão leve... tão sutil... tão pòlen... 
como aquela nuvem além (vêem?) — nesta tarde de outono 
ainda tocada por um vento de lábios azuis... 

José Gomes Ferreira

Objetos Perdidos

para não esquecer da perene inspiração...


Por veredas de sueño y habitaciones sordas
tus rendidos veranos me acechan con sus cantos
Una cifra vigilante y sigilosa
va por los arrabales llamándome y llamándome
pero qué falta, dime, en la tarjeta diminuta
Dónde están tu nombre y tu calle y tu desvelo
si la cifra se mezcla con las letras del sueño
si solamente estás donde ya no te busco

Julio Cortázar

novembro 24, 2010

Para terminar o dia...




História dum coelhinho que nasceu numa couve

Como os pais do coelhinho nunca mais aparecessem, a couve passou a cuidar dele como se do seu próprio filho se tratasse.
Com ervinhas tenras que cresciam ao seu redor, a couve foi criando o coelhinho dentro do seu seio até que este passou a procurar a sua própria alimentação.
O coelhinho, que tinha um coração muito bondoso, retribuindo o afecto que a couve lhe dedicava, considerava-a como sua verdadeira mãe.
A mãe couve e o seu filhinho adoptivo foram vivendo muito felizes até que um dia uma praga de gafanhotos se abateu sobre aquelas terras.
O coelhinho, ao ver que aqueles insectos vorazes devoravam tudo o que era verde, cobriu com o seu próprio corpo o corpo da mãe couve e assim conseguiu que os gafanhotos pouco dano lhe fizessem.
Quando aqueles insectos daninhos levantaram voo, os campos em volta passaram a ser um imenso deserto de areias e pedra.
O pobre coelhinho, que sempre tinha vivido nas proximidades da sua mãe couve, teve de deslocar-se para muitos quilómetros de distância a fim de procurar comida.
Mas já nada havia que se pudesse mastigar naquelas terras.
Passaram muitos dias e o pobre coelhinho estava cada vez mais magro, mais magro e faminto.
Então a mãe couve disse-lhe assim:
- Ouve meu filho: é a lei da vida que os velhos têm de dar o lugar aos novos; por isso só vejo uma solução: assim como tu viveste durante algum tempo no meu seio, passarei a ser eu agora a viver dentro do teu. Compreendes, meu filho, o que eu quero dizer?
O pobre coelhinho compreendeu e, embora com grande tristeza na alma, não teve outro remédio, comeu a mãe.

Pedro Oom 

El Burro Y La Flauta



talvez seja porque soube hoje que minha sobrinha caçula aprendeu a andar... mas estou um tanto inclinada aos escritos infantis... este breve conto, longe de ser para crianças, trouxe-me um profundo pensar... mas, por ser fábula, por ter bichinhos e coisa tal, emula a inocência...

Tirada en el campo estaba desde hacía tiempo una Flauta que ya nadie tocaba, hasta que un día un Burro que paseaba por ahí resopló fuerte sobre ella haciéndola producir el sonido más dulce de su vida, es decir, de la vida del Burro y de la Flauta. 

Incapaces de comprender lo que había pasado, pues la racionalidad no era su fuerte y ambos creían en la racionalidad, se separaron presurosos, avergonzados de lo mejor que el uno y el otro habían hecho durante su triste existencia. 

Augusto Monterroso 

Historinha de Pedro, o filho





... pois Clarice, até para contar uma história de filho, faz toda a diferença.




- Amanhã faço dez anos, vou aproveitar bem este meu ultimo dia de nove anos.
Pausa, tristeza:
-Mamãe, minha alma não tem dez anos.
-Quanto tem?
-Só uns oito
- Não faz mal, é assim mesmo.
- Mas eu acho que se devia contar os anos pela alma. A gente dizia: aquele cara morreu com vinte anos de alma. E o cara tinha morrido mas era com setenta anos de corpo.

Clarice Lispector
 

Mimo para os 27 que me seguem

Mundo de K: 500 Anos de Mulheres na Arte Ocidental

Sempre faço referência ao blog Mundo de K, onde me encontro com os posts mais elegantes no quesito Arte, que este mundo virtual pode nos oferecer.
Minha "caretirinha" de sócia, já tem 2 anos e tanto, e é sem prazo de validade.
Sou fã inconteste.
Posts novos, são obrigatórios, e os antigos, surpresas que me surgem que nem presente inesperado.
Este, de 2007, é imperdível.
Copiei meu comentário, como apresentação.
Divido com vocês, e convido-os a conhecer.
E aquela coisa toda aos meus 27 seguidores!
Evohe, Kovacs.


"Ah, Alexandre!
Vir a seu blog, abrir uma janela qualquer e sempre sempre, ver-se perante um mimo de arte, seja ela qual for...
Simplesmente magnífico este video! Não o conhecia e encantei-me com tudo: a música perfeita, a sincronia deliciosa entre as imagens que se fundem de uma forma tão viva que em algumas passagens, sente-se a alegria do sorriso, fundindo-se impiedosamente com um ar de tristeza que espera o rosto seguinte... e o olhar? Sim, não tenho medo de dizer, concordando com você, que é mesmo um só olhar que nos percorre em cada uma das mudanças de cena, pincel, cultura, século ou estado de espírito do pintor ou da sua musa. Eis o segredo do artista que traz esta beleza para nós: todas as mulheres numa só. O sonho de uns e o pesadelo de outros, mas no fim, é isso... o olhar de uma mulher ultrapassa os limites do tempo ou de qualquer outra invenção do homem. Ele existe, é nossa alma única, perene e infinita.
Grata.
Você sempre me emociona".

novembro 22, 2010

Lamechas (para M., que hoje assim se sente)





mas se é desde sempre que sinto esta vontade de chorar todo meu sentir quando te lembro,
não há razão para que seja ao me debruçar sobre minha vida, que soe-me uma aguda lágrima
que cerze as linhas do passado em um bordado de dores&mágoas que nem sabia existir assim...
aí me vem um quê de não-sei-bem-o-que-me-falta
e desabam-me notas dissonantes no teclado do piano que se esconde atrás da cortina do tempo
fazendo a tristeza dançar um tango tão triste que mais parece um fado.
e ai de mim, que nem mesmo sei desta canção, quanto mais entoá-la entre o molhado chão
onde pisas minhas pérolas de sal&água, e a voz que me falta quando fecho os olhos para não te ouvir o não-o-talvez-o-até-quando-quem-sabe...
então colho amparo no fundo do coração de quem agora diz que me segue...


e eu que não sabia o que era lamecha
debulho uma trova com todas as definições da palavra saudade.


albanegromonte

Carcere



entre a boca que se abre num sorriso, e o olhar que se perde na linha além do mar,
mora meu lado de dentro
é lado que você não queria conhecer
ruim que é de se ver, tocar ou amar.
neste espaço que disse antes, mal cabe uma cicatriz
(existe, é verdade, mas se enrosca sobre os lençois encarnados de outrora, tentando ficar invisível)
é neste oco de mim, que desencontro a tristeza, que me olho no espelho invertido e vejo que minha alma não é assim tão preparada para partir
é de lá que fito os abismos, que descalço os sapatos e esmago os espinhos que me feriram
e lá tem uma garrafa de absinto que bebo em goles infinitos
-em taça de cristal verde, que nem os olhos do Ciúme
é lá que me arrebento em paredes de saudades incolores, que escrevo meus ais, que guardo minhas faltas, é lá que escondo as páginas arrancadas do livro não-escrito, desaberto em tolas páginas de papel amarelado pelas horas de tentar,
os poemas que não escrevo,
as músicas que nunca cantarei.
lá eu me viro no avesso, me entorto e me permito ser cega como sei que sou, quando tiro os óculos e só o escuro dos contornos me chegam ao olhar.
é lá que a dor maior de não ver se encontra com o vazio estúpido da minha permanência na Terra
é lá que posso lançar meu grito de interrogação
onde procuro o filho que não tive
e sinto o frio da solidão que me acompanhará na eternidade do que não deixei para marcar minha passagem por aqui
é lá onde às vezes me tranco por dentro e não atendo aos chamados
é lá onde sou tão infeliz que dou risada de mim.

albanegromonte

Tragédia Brasileira



Misael, funcionário da Fazenda, com 63 anos de idade.
Conheceu Maria Elvira na Lapa — prostituída, com sífilis, dermite nos dedos, uma
aliança empenhada e os dentes em petição de miséria.

Misael tirou Maria Elvira da vida, instalou-a num sobrado no Estácio, pagou médico,
dentista, manicura... Dava tudo quanto ela queria.

Quando Maria Elvira se apanhou de boca bonita, arranjou logo um namorado.

Misael não queria escândalo. Podia dar uma surra, um tiro, uma facada. Não fez
nada disso: mudou de casa.

Viveram três anos assim.

Toda vez que Maria Elvira arranjava namorado, Misael mudava de casa.

Os amantes moraram no Estácio, Rocha, Catete, Rua General Pedra, Olaria, Ramos,
Bonsucesso, Vila Isabel, Rua Marquês de Sapucaí, Niterói, Encantado, Rua Clapp,
outra vez no Estácio, Todos os Santos, Catumbi, Lavradio, Boca do Mato,
Inválidos...

Por fim na Rua da Constituição, onde Misael, privado de sentidos e de inteligência,
matou-a com seis tiros, e a polícia foi encontrá-la caída em decúbito dorsal, vestida
de organdi azul.

Manuel Bandeira

Ausência Número 14

sim, eu sinto falta da voz, da poesia palpável que crescia no meio das canções, das malcriações no palco, daquele jeito só dele de dançar, do seu olhar que atravessava a multidão nos ginásios e parecia se congelar no olhar da gente que o via tão longe, tão...
sim, eu sinto falta do verbo deste trovador...



"É saudade, então
E mais uma vez
De você fiz o desenho mais perfeito que se fez
Os traços copiei do que não aconteceu
As cores que escolhi entre as tintas que inventei
Misturei com a promessa que nós dois nunca fizemos
De um dia sermos três
Trabalhei você em luz e sombra
E era sempre, Não foi por mal
Eu juro que nunca quis deixar você tão triste
Sempre as mesmas desculpas
E desculpas nem sempre são sinceras
Quase nunca são
Preparei a minha tela
Com pedaços de lençóis que não chegamos a sujar
A armação fiz com madeira
Da janela do seu quarto
Do portão da sua casa
Fiz paleta e cavalete
E com lágrimas que não brincaram com você
Destilei óleo de linhaça
Da sua cama arranquei pedaços
Que talhei em estiletes de tamanhos diferentes
E fiz, então, pincéis com seus cabelos
Fiz carvão do baton que roubei de você
E com ele marquei dois pontos de fuga
E rabisquei meu horizonte
E era sempre, Não foi por mal
Eu juro que não foi por mal
Eu não queria machucar você
Prometo que isso nunca vai acontecer mais uma vez
E era sempre, sempre o mesmo novamente
A mesma traição
Às vezes é difícil esquecer:
"Sinto muito, ela não mora mais aqui"
Mas então, por que eu finjo
Que acredito no que invento?
Nada disso aconteceu assim
Não foi desse jeito
Ninguém sofreu
É só você que me provoca essa saudade vazia
Tentando pintar essas flores com o nome
De "amor-perfeito"
E "não-te-esqueças-de-mim"
Renato Russo, in Acrilic On Canvas

Poeta Menino, Esse Manoel...







No descomeço era o verbo
Só depois é que veio o delírio do verbo.
O delírio do verbo estava no começo, lá onde a
criança diz: Eu escuto a cor dos passarinhos.
A criança não sabe que o verbo escutar não funciona
para cor, mas para som.
Então se a criança muda a função de um verbo, ele
delira.
E pois.
Em poesia que é voz de poeta, que é a voz de fazer
nascimentos
-

O verbo tem que pegar delírio.


Manoel de Barros

novembro 07, 2010

Do Cemitério dos Vivos





"Vista assim de longe, a noção de horror que se tem da loucura não parte da verdadeira causa. O que todos julgam é que a coisa pior de um manicômio é o ruído, são os desatinos dos loucos, o seu delirar em voz alta. É um engano. Perto do louco, quem os observa bem, cuidadosamente, e une cada observação a outra, as associa num quadro geral, o horror misterioso da loucura é o silêncio, são as atitudes, as manias mudas dos doidos."


Lima Barreto

Para Erwin





Todas as manhãs, entre o enfiar
do sapato esquerdo e do sapato direito
(...) vê a vida desfilar-lhe diante dos olhos.
Por vezes só a custo consegue
calçar o sapato direito.

Judith Herzberg

antes de partir




mergulhar os pés em águas escuras, desconhecidas águas.
romper diques e cercas imperfeitas
colidir com o nada
abraçar-se ao tigre de veludo antes que o poeta o transmute em livro

sentir na pele a martelada  do sangue que transborda deste coração insatisfeito
que
bate bate bate bate
em portas que ninguém abre
(pois não há mais ninguém ali)
coração este
que
apanha apanha apanha
em circuitos alternados de despedidas
(pois ninguém fica muito tempo por ali)

esculpir em aço a flor do desejo quase obsceno
no meio de tanta tragédia, de querer ainda e tanto
ser feliz e sorrir sem virar pelo avesso
o choro guardado anos a fio na garganta
que flerta com o outro fio
(da navalha)

travar toda a dor
num gole de um vinho que avinagrou
de esperar inútil em taça de vidro barato

(cristais estilhaçam no grito e era soprano aquela mulher)

sentir que pulou muito tarde do navio em chamas
e nem o mar
(o infinito aguaceiro ali na frente dos olhos que queimam)
poderá lavar esta alma
que traz ainda em si
a lembrança de nada, de tudo de todos os advérbios
temporais esquecidos

e por que não dizer agora que chegou ao fim
a tinta do bico-de-pena com que escrevo este epitáfio?

"alma esta que tatua em sua veste translúcida
a lembrança do amor que cresceu sem nascer"



albanegromonte

novembro 04, 2010

Relendo Posts...



Que tipo de amor, vai embora sem deixar marcas?Que tipo de amor deixa você prosseguir tranquilamente sem sentir pontada qualquer de dor?Onde existiu amor, sempre sobra depois a dor.Felizmente, para mim, onde existiu dor, hoje se esbalda o amor...
Mas como sou poeta, posso sempre fingir, onde não mais encontro dor, que há. Pois é desta cor que se faz a Poesia.
Vermelha.


E quando minha alma se inclina, tanto que
tropeça nas dormentes das linhas que o Destino riscou nas minhas mãos,
volteio correntes de flores que deposito no altar do Tempo.
Dragão tatuado no meu pescoço pisca centelhas de fogo celestial,
e dobro os joelhos diante do espelho que reflete a cruz que dorme no meu
umbigo


(imploro ao vento: me leva daqui)


Então através da cortina do sentimento que corre feito trem nos
sulcos da minha face, observo o quarto vermelho sangue 
logo ali no peito cicatrizado, onde
acontecimentos tardios,
detém-se nas paredes e átrios
remoendo e colhendo flores de dores, de desenganos e de saudades, 
rasgando feridas
desfolhadas e inacabadas
dentro deste quarto vermelho,
para onde o vento Mistral que soprou vida em mim,
leva na sua dança de mistérios,
as evidências da morte que ali se fez há tanto.

(contemplo os campos repletos: gosto daqui)


albanegromonte