novembro 25, 2010

Aos D´Além Mar



Devia morrer-se de outra maneira. 
Transformarmo-nos em fumo, por exemplo. 
Ou em nuvens. 
Quando nos sentíssemos cansados, fartos do mesmo sol 
a fingir de novo todas as manhãs, convocaríamos 
os amigos mais íntimos com um cartão de convite 
para o ritual do Grande Desfazer: "Fulano de tal comunica 
a V. Exa. que vai transformar-se em nuvem hoje 
às 9 horas. Traje de passeio". 
E então, solenemente, com passos de reter tempo, fatos 
escuros, olhos de lua de cerimônia, viríamos todos assistir 
a despedida. 
Apertos de mãos quentes. Ternura de calafrio. 
"Adeus! Adeus!" 
E, pouco a pouco, devagarinho, sem sofrimento, 
numa lassidão de arrancar raízes... 
(primeiro, os olhos... em seguida, os lábios... depois os cabelos... ) 
a carne, em vez de apodrecer, começaria a transfigurar-se 
em fumo... tão leve... tão sutil... tão pòlen... 
como aquela nuvem além (vêem?) — nesta tarde de outono 
ainda tocada por um vento de lábios azuis... 

José Gomes Ferreira

8 comentários:

Paula disse...

Que maravilha de texto... uma forma solene de ver a morte. Como ela é natural e com naturalidade.
Beijos

M. disse...

Morrer assim. Com um convite.

vou tentar.

Unknown disse...

Vejo seu retrato como se eu
já tivesse morrido.
Grinaldas batem continência.

Livre na sua memória escolho a forma
que mais me convém: querubim
gaivotas blindadas
suave o tempo suspende a engrenagem
Do outro lado do jardim já degusto
os inocentes grãos da demência.

Trago comigo um retrato
que me carrega com ele bem antes
de o possuir bem depois de o ter perdido.

Toda felicidade é memória e projeto.


Eu investi, em um diálogo dos textos e das escolhas. Um Cacaso para continuar o José Gomes Ferreira. Que tal?

Continue... e aquela coisa toda. Com beijos.

Unknown disse...

Uma eutanásia romântica!
(desculpe a palavra eutanásia, tira toda a poesia do texto)

Lady Cronopio disse...

Utena, é realmente um belo texto, e quem nos dera encarar assim, esta senhora...
Beijos

Lady Cronopio disse...

M.
Espero ter chegado a tempo!!!
Não é convite para você.
Beijos

Lady Cronopio disse...

Djabal, não conhecia este.
Mais um presente que me dá.
Tentarei continuar à caltura.
Beijos e toda aquela coisa.

Lady Cronopio disse...

Ivan, a palavra escrita por alguém que traz a poesia na ponta dos dedos, jamais soará indevida.
Concordo com você. É mesmo uma emulação da temida-desejada Eutanásia.
Isso já vale um escrito, não acha?
Beijos