outubro 18, 2009

A Canção Tocou na Hora Errada


A sofreguidão da música popular brasileira contrastando a fabulação dos
minutos que antecederam a morte da poetisa Ana Cristina César.



Andava exaustivamente pelo apartamento à procura de um canto em que pudesse clarear sua mente atormentada, mas não o encontrava.

Tripudiava em seu próprio corpo e clamava aos deuses algum perdão pela triste inquisição na qual vivia. Pobre Ana Cristina ligava o rádio e chorava sozinha.

Eram duas da madrugada, o apartamento dormia em sua inquietude, enquanto numa rebelião de vozes o Céu e a Terra invadiam seu ser. O acaso contemplava sua doce desesperança e nas mãos da fada da noite alumiava a vara de condão dos desesperados, que choravam a casta solidão, amarela, opaca, mas que não deixava de ser solidão. As paredes pareciam comprimir seus pulmões, fazendo-a se sentir como alguém que prendera um dedo na porta.

Dor, meu deus, quanta dor.

Ana C.,como era conhecida, tinha como companhia somente ele, o rádio, um tanto velho, gasto. Já não havia brilho, tão pouco a vitalidade que tinha no auge dos anos 70. Apenas ele naquelas tantas noites cessou seu pranto, amou-a de modo perfeito, ele compreendia seus anseios e nas incontáveis noites de loucura ofertava-lhe uma canção de Maysa e tudo ficava bem. Ela reconhecia na voz de Maysa a mesma nostalgia que a tornara louca.

De repente o tempo correu como louco por entre as faixas onde só os transeuntes tinham passagem livre e o badalar anunciava do alto do 10º andar aquilo que a jovem tanto sonhava.

Seu amigo rádio naquele momento não lhe acalmava, não lhe entendia, não lhe amava como deveria amar.

Ana C. enxergou pelo negro olho da janela um convite tentador — abriu os braços e dissolveu-se santa no ar. "Viram-se os barcos afundando e o filete de sangue na gengiva".

A canção de Maysa tardou a tocar.

Ariana Segantim

5 comentários:

Unknown disse...

Li um conto do Maupassant onde ele dizia que a nossa mente, repentinamente, entra em uma arena de areia, daquelas de circo, e roda em torno daquele palco, como um cavalo subjugado pelo condutor, e a impossibilidade de sair dali, torna todas as músicas tardias, toda a memória inútil. Deixo-o dizer com suas palavras: " Já não posso nem chegar perto das pessoas que antes eu encontrava com prazer, de tanto que as conheço, de tanto que sei o que vão me dizer e o que vou responder, de tanto que já vi o molde de seus pensamentos invariáveis, o vinco de seus argumentos. Cada cérebro é como um crco onde um pobre cavalo circula eternamente encerrado. Não importam quais sejam nossos esforços, nossos desvios, nossos subterfúgios, o limite está sempre próximo e arredondado de uma maneira contínua, sem saídas imprevistas e sem portas para o desconhecido..."
Perdoa-me a repetição, mas ambos os textos são tão lindos que a variação entre eles, para mim foi uma porta para o desconhecido. Sabe?
Beijos; e aquela coisa toda.

Lady Cronopio disse...

Perdão?
Você está intimado a me trazer estas coisas lindas, sempre.
Reativam minha paixão por tudo isso que existe nas letras deste mundo véio sem porteira...
Sempre você.
Grata cada vez mais e aquela toda coisa.
Beijos, caríssimo!

Vê Barros disse...

Por um momento me senti na pele dela.
Por um momento vi alguns acontecimentos de minha vida passar neste conto!!!

Lindo, lindo.

Bjs

Lady Cronopio disse...

Ow, Vê!
Grata pela visita.
Beijos

Alexandre Kovacs disse...

"Olho muito tempo o corpo de um poema / até perder de vista o que não seja corpo / e sentir separado dentre os dentes / um filete de sangue / nas gengivas."

Ana Cristina Cesar - "A teus Pés" (1982)