outubro 16, 2008

Da Série Poetas do Mundo (Portugal)




Das terras lusitanas, sabe-se que há um borbulhar de talentos literários. Talvez esteja no código genético destes nossos "irmãos", quem sabe na presença absoluta do mar ali em frente, nos ancestrais mouros, na proximidade com as culturas outras... não sei e quem saberá? O fato é que Portugal premia (a quem de perto observa), com estes escrevinhadores intrigantes.
Eis um.


Trevas

Para o Manuel de Freitas


E o pior é que chamamos liberdade
a um tapete que, rolante, já não ouve
a opinião dos nossos pés; que nos leva
para onde e anuímos, alheados,
aos mecânicos desígnios do terror.

Respiramos cadeados, consumimos injustiça,
damos duas várias voltas ao risonho torniquete
que nos serve de chapéu; trocamos a cabeça
por um prato de aspirinas. Os clássicos da vida
sem tristeza nem remorso (Cinderela,

Varadero, off-shore) iluminam o cenário
em que dormimos, inocentes como balas
e nem sei como não somos mais felizes.
As rémoras, os ogres, os deuses mais bonitos,
velam nossa carne como grifos educados.

O tratado das sementes, o saber do lenhador,
queremos lá saber de quem é pobre como nós.
Confiados ao acaso, disputamos amuletos,
reforçamos sob os pés a solidez do desacerto,
colocamos outra pedra no sapato.

Para o centro do inferno dirigimos
este filho, o filho deste carro,
cativados pelo direito conquistado
de entregar os nossos dias, como rezes,
ao cutelo de despachos infiéis.

Neste cerco, viver é uma questão
de prorrogar o desalento, de iludir
o infortúnio: cerramos uma porta suicida,
desatamos a gravata, ficamos satisfeitos
quando o gelo, na bebida, é de boa qualidade.

Se olhamos para o chão desaparece
o horizonte; se olhamos para o céu
ficamos sós. Não percebo como rimos
quando pedem que posemos para a foto
de família. Alguém nos enganamos.

Confundidos pelo surto de mentira,
leiloados pela última hipnose,
enxertados no pedúnculo da morte,
semi-envergonhados, de sorriso padecido,
dizei-me se este rosto de cartão amarrotado,

se esta alma como um campo pedregoso,
se estes pés adaptados ao espinho,
se isto que nós vemos é um homem.

José Miguel Silva


José Miguel Silva nasceu em Maio de 1969, em Vila Nova de Gaia. O seu primeiro livro, O Sino de Areia, foi publicado em 1999. Sobre o seu mais recente livro, Movimentos no Escuro, Pedro Mexia escreveu: « José Miguel Silva demonstra uma vez mais uma arte poética que se distancia de um espontaneísmo ingénuo e escolhe um trabalho poético intenso mas discreto. Não se vislumbra aqui nenhuma espécie de formalismo, apenas uma sensata sabedoria estrófica que desencadeia poemas construídos palavra a palavra, que evitam clichés e jogam no inesperado vocabular.» Outros livros de José Miguel silva são Ulisses Já Não Mora aqui (2002) e Vista Para um Pátio seguido de Desordem (2003).
Excertos de uma entrevista dele para a revista Alcatéia, em 2005. Tão bons quanto um poema dele, na minha opinião.

"O que me levou à literatura começou por ser a emulação dos escritores que lia e admirava. No meio do caos da realidade e das emoções, a literatura parecia surgir como uma promessa de sentido, de sentido estético e moral. Uma espécie de baluarte contra a estupidez do mundo. Hoje em dia sou muito menos otimista quanto ao poder salvador (para usar um termo de origem religiosa) da literatura."

"Atualmente a literatura não tem nenhuma influência na vida pública ou política, pelo menos em Portugal. Mas no nível pessoal, individual, claro que a literatura pode ser, se não libertadora, pelo menos estimulante do ponto de vista mental. A poesia é a anti-rotina por excelência, é a criação da surpresa, tal como a vida deveria ser."

"Já não faz muito sentido, creio, a disjunção poesia e prosa. Num tempo em que a poesia tende a saturar-se (e a anular-se) em vistosos efeitos sonoros, o que me interessa, sobretudo neste momento, é a possibilidade de dizer coisas, de transmitir frases com sentido, de fazer perguntas que se entendam. Fogos de artifício verbais e outros floreados são bons para quem não tem mais nada em que pensar."

"O humor é uma linguagem universal. Se eu tenho a vaga aspiração de poder ser entendido pelas pessoas comuns (que, contudo, não lêem poesia), penso que o humor poderia ser uma chave de acesso. Uma das coisas mais desagradáveis na poesia e na vida portuguesa é a falta de sentido de humor (ao contrário do que ocorre na vida brasileira, por exemplo)."

"Os escritores portugueses são quase sempre muito sisudos e solenes, enchem a boca de palavras gordas (ou tão evanescentes como asas de libélula) e com isso só conseguem provocar um sono mortal. O humor é importante porque, se não encaramos a vida como uma comédia (ainda que de mau gosto), só nos resta encará-la como uma tragédia (que também é, é claro)."


Inspirei-me aqui:
http://antologiadoesquecimento.blogspot.com
E aqui:
http://rascunho.rpc.com.br/index.php

Post dedicado ao meu amigo e poeta das terras d' além mar, José Braz

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