outubro 12, 2006

Uma História de Amor

Um velho conto, do tempo em que achava que podia embarcar nessa... um bom amigo, a quem chamo Viejo Brujo, em homenagem à sua sabedoria secular e talento borgiano, já me avisou que no Sul/Sudeste e coisa&tal, piriri tem um significado não muito bonito... rs... mas ainda não encontrei outro nome pra batizar o coitado... se alguém tiver uma idéia... estou aceitando sugestões.

PIRIRI E FLÔ

Piriri era pobre, feio e negro. Piores classificações para a gente daquela pequena cidade do interior, lá no sertão de Pernambuco, nos idos de não sei quando não poderiam existir. Flô era rica, bonita, "galega" e filha do Juiz. Melhores referências, só a irmã do padre, a neta do médico ou a sobrinha do delegado. Mas Flô era a melhor, porque além de tudo, era uma menina muito boazinha, que se dava com todo mundo na cidade, não fazendo diferença. Talvez por isso, ninguém tenha reparado quando ela começou de amizade com Piriri, moleque conhecido de todos, filho de Jacinta, lavadeira de metade da cidade e pai desconhecido (desconfiava-se de um tal de Borba, que passara por aquelas bandas há cerca de 10 anos, com sua cabeleira de poeta e fala mansa, vendendo Enciclopédias. Constava no cartório, nascimento de pelo menos três meninos sem pai, exatos nove meses após a partida súbita do tal, no meio da madrugada, levando apenas a roupa do corpo e deixando até o mostruário da Enciclopédia, que ficou com a dona da pensão, já que ele não pagava há duas semanas). Pois bem, Piriri e Flô, então com 9 anos, estudavam na mesma escola: O Grupo Escolar Pe Luiz Gonzaga, pois não havia escola parttcular por ali, sendo mesmo tudo misturado... ricos e pobres aprendendo o be-a-bá, com D. Dalva, professora de todos ali na região. Os dois eram que nem unha e carne, não se despregavam nem na hora do lanche, quando Flô dividia seu pão com queijo e suco com o garoto que nem café havia tomado. Voltavam juntos da escola e sabe Deus o que conversavam, nem eu que estou contando a história... Os anos se passaram e a amizade dos dois se estreitava até a explosão hormonal tomar conta deles então com 15 anos. Flô se tornara uma bela moça, torneada, com sua pele alva, seus cabelos agora castanho-claros, e com tantos cachos que era capaz de se perder um anel ali dentro. Piriri, bem para este não houve tempo que desse jeito. Comprido e magro, parecia um espeto de virar tripa, a pele azeitonada e os cabelos cortados rentes. Ah, tinha os dentes. Piriri tinha uma dentadura perfeita, diamantada... A tal explosão pegou os dois no meio de uma visita à capela da cidade onde Piriri ajudava o Padre na limpeza da pequena nave. Estavam sós, quer dizer, e Deus, mas este devia estar cochilando senão aquilo ali não teria acontecido. Flô dava um trato na imagem da Virgem para ajudar Piriri, e quando este levantou os olhos do chão que lavava para enxugar o suor da testa, viu Flô banhada pelas luzes multicoloridas que vinham dos vitrais e penetravam seus cachos, dali, a luz seguia pelo rosto perfeito e fazia uma pausa no buço úmido de calor. A menina passou a mão na perna afastando um mosquito e Piriri teve a visão do paraíso: as coxas de Flô. Sentindo-lhe o olhar, Flô virou-se e viu Piriri estático, com cara de bobo, segurando o rodo com uma mão e com a outra coçando a carapinha. Parecia estar vendo assombração. Os dois se aproximaram, tocaram-se os rostos e a igreja incendiou-se com a paixão adormecida há tanto. Piriri e Flô se amaram no chão sagrado sob o olhar reprovador das imagens dos santos e juraram nunca se separar. Promessa difícil de ser cumprida, porque Flô, estava arrumando o enxoval para estudar num colégio interno na capital. O desespero tomou conta deles, quando perceberam que faltavam apenas um mês para a partida. Inevitável. Flô partiu. Piriri permaneceu no interior. As primeiras férias trouxeram uma Flô mais apaixonada e mais sedenta. Piriri não negava-lhe nada. Foram descobertos pelo coroinha Raimundo, que nutria um amor platônico por Piriri e cuidou logo de entregar os dois ao padre. Confusão maior nunca se vira por ali. O pai de Flô queria castrar Piriri, mas foi impedido pelo irmão que era delegado, que argumentou naõ ficar bem. Seria a comprovação da sem-vergonhice da filha. Decidiram exilar Piriri. Ali ele não voltava enquanto o Juiz fosse vivo. Piriri insistiu com Flô, mas ela não quis segui-lo neste caminho incerto. Separaram-se, entre lágrimas e juras. Muitos anos se passaram, Flô casou-se com o filho do médico e teve um filho que morreu vítima de picada de cobra, coisa comum por ali. Piriri foi pra São Paulo, destino de todo nordestino errante. Lá, foi trabalhar em construção, mas sabido como ele só, estudou e se formou engenheiro. Soube por sua mãe, que o Juiz tinha morrido e voltou pro interior, quase rico e até mais bonitinho. Comprou uma loja de material para construção e logo já era empreiteiro . Agora sim, Piriri era importante, e algumas moças da cidade até que se atiravam pra cima dele. Mas Piriri não esquecera seu grande amor... Flô, já madura, mais encorpada e ainda mais bonita. O problema era o marido, ciumento que só, vivia nos cascos de Flô. Piriri não desistia. Arrumou um moleque que levava bilhetes açucarados para Flô todo santo dia. Flô não lhe dava atenção; por fora, pois que por dentro a mulher morria de desejo pelo seu amado e odiava ter sido obrigada a casar com aquele palerma só porque seu pai negociara um livramento de cadeia do safado que tinha matado um boiadeiro lá pras bandas do Piauí, com esse casamento com moça desonrada. E o maldito lhe passava isso na cara toda vez que bebia, que era sempre. Mas era uma mulher honesta, e só uma vez respondeu a Piriri. "No dia que for livre, eu te procuro"- escrevera com a mesma letra espalhadinha do tempo de colégio, e Piriri guardava o bilhete na carteira, junto com a imagem de Nossa Senhora Aparecida e uma foto da sua mãe. No caminho pro cemitério da cidade, tinha um boteco onde se servia comida da pesada: rabada, buchada, cozido, sarapatel e outros ícones nordestinos. Quando Piriri descobriu que Flô ia todo dia arrumar o túmulo do filho e acender-lhe velas, tornou-se o mais fiel frequentador do boteco que se chamava Fio de Cabelo... Explico: o lugar era antes um salão de beleza que foi á falência, a mulher que comprou o ponto não quis mudar o nome para não ter que pagar a diferença à Prefeitura. Pronto. Era o Boteco Fio de Cabelo e ninguém reclamava. Pois bem, que de tanto frequentar anos a fio o tal boteco com seus petiscos, Piriri engordou, mas tanto que nem merecia mais este nome. Ia regularmente ao médico que lhe recomendava diminuir a ingesta calórica, praticar exercícios, essas coisas que médico recomenda e ninguém faz lá no interior. Imagina, era a única oportunidade de ver sua amada, e ele ia comer o quê, se ali só havia esta modalidade culinária... Quase se arrependeu quando foi acometido de um episódio isquêmico que o deixou uma semana no hospital e mais três sem sair de casa. Mais doente de saudade que de outra coisa, quando Piriri foi liberado, correu pro boteco se empanturrar com uma Mão-de-vaca acompanhada de uma branquinha, para esperar o seu amor passar. Mas ela não passou neste dia e nem no outro. Piriri coçava a carapinha agora embranquecida (tinha já 58 anos), quando seu moleque de recados invertendo a situação, chegou com um bilhete para ele. Piriri lia enquanto enxugava a boca com as costas da toalha de mesa... "Venha me ver. Estou pronta para você, meu amor. Tua Flô". Piriri soltou a toalha, largou dinheiro na mão do moleque e partiu em disparada para encontrar a sua Flô. Eram mais de três quilômetros, que ele fez em dez minutos. Adentrou na casa de Flô, sem pedir licença e a ouviu chamar do quarto... Linda a sua Flô, deitada na cama nua, plena de maturidade, à sua espera, com um desejo acumulado por 43 anos... Piriri arrancou as roupas e num gemido surdo, jogou-se sobre o corpo pequeno de Flô, sussurrou as mesmas juras de adolescente em seu ouvido e ela riu, abrindo os braços e o coração para o seu amado... Eis que Piriri lembra do médico com suas recomendações, lembra do prato que comera antes da desabalada carreira, dos dias no hospital, da dor lancinante que lhe rasgou o peito... Não, Flô... Decidiu que não iria perdê-la de novo. Diminuiu a intensidade do gesto, carinhou-lhe o rosto querido, beijou-lhe os lábios e deitou-se a seu lado, como se nunca tivesse feito nada diferente até aquele dia. Tomou-lhe as mãos ainda macias, percebeu as duas alianças no dedo esquerdo, "viúva", abraçou-a docemente e disse "Conte, meu amor, conte como tem passado todos estes anos..."

albanegromonte

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