agosto 18, 2006

Para Werther


Agora eu Sei, caríssimo...



Amanheceu mais cedo, como sempre acontece, pois ainda não troquei a persiana arrebentada. O despertador chamou duas vezes, e esperei o silêncio que este barulho evoca logo após, mas foi tua voz quente e preguiçosa que me disse a oração diária: “vai levantar ou te empurro?” Nem precisou. Pulei da cama e mesmo sem óculos, vi todos os contornos apolíneos do teu corpo semi-coberto pelo lençol com motivos infantis (capricho teu, ao qual não resisti).
O teu olhar de mel, não foi menos espantado que o meu: “O que houve? Baratas ou pregos na cama? Teve pesadelo de novo? Vem cá, dá o beijo do teu príncipe e cuida que a hora está passando.”
Procurei os óculos para ver se era verdade, mas não precisava. Como um cego não precisa da visão para sentir que há alguém num lugar. O frio do ar-condicionado que nunca uso, o cheiro do teu corpo no ar misturado com cheiro de amor, que diziam, que diziam... meu Deus!
O que aconteceu? Roupas espalhadas, garrafa de vinho vazia, taças enviesadas perigosamente sobre o criado-mudo. Minhas entranhas ardiam como sempre no day after . Meus pulsos tinham marcas vermelhas e meus lábios inchados não desmentiam o óbvio: fizemos amor. E pra valer.
Para não enlouquecer de vez, saí silenciosamente do quarto e fui ao banheiro. Tua escova de dentes rubro-negra, teu shampoo, teu creme de barbear, teu desodorante... tudo no seu lugar. Como se nada tivesse acontecido nos últimos 11 meses. Como se estivesse acordando de um sonho mau, muito mau, meu coração batia em descompasso com a mente que buscava explicação para aquilo tudo. Eu sabia que algo acontecera.
Os meses de insanidade, de depressão e dor, ainda me marcavam a memória. Meus remédios tarja preta jaziam junto aos cremes que tentam deter o Tempo, dizendo que algo ali era real.
Olhei no espelho, e me refleti mais jovem.
Eu estava um ano mais jovem. Mas como?
Tomei uma ducha quente, lavei os cabelos e fui à cozinha fazer um café forte. Bem forte. Ao procurar o adoçante vi que estava por trás da lata de leite em pó. Leite em pó??? Mas eu não tomo leite em pó desde que fiz 5 anos de idade.
Atordoada, abri a geladeira e lá estavam as dezenas de latinhas de Coca Cola, o suco de pêssego em caixa, o vidro de palmito mal fechado, o seu bolo preferido, a torta gelada especial da sua mãe...
Fechei a porta e li desolada o bilhete escrito com minha letra infantil, pregado na porta da geladeira: “Belo, tem sanduíche de atum na geladeira e leite pronto. O café deve estar bom ainda. Amanhã trabalho ás 7h e não precisa programar o despertador, pois já fiz isso. Voltarei às 19h. Quero ir pro cinema . Hoje é sua folga, não? Não esqueça de pagar a luz. O cartão está no lugar de sempre. Beijo na boca. Tua sempre. PS: E não me acorde pra papear, que estou muito cansada e já passa das duas horas...”
Pensei em ligar pro meu psiquiatra, mas a loucura era absurda demais. Até para ele.
Certa de que algo ainda iria acontecer explicando o inexplicável, cumpri meu ritual. Ao abrir a porta da casa, vi que a chave não era a do meu carro. Demorei pra entender que você entrara por último, então a minha estaria jogada em algum canto da sala.
Desci o elevador sozinha e com óculos escuros para que ninguém visse a perplexidade refletida nas minhas retinas.
Liguei o piloto automático e segui avenida afora com todos os pensares por dentro.
Como ainda era cedo, estacionei na beira-mar para um pensamento qualquer que me livrasse da angústia de ter em casa, alguém que partiu há um ano, sem virar as costas, sem dizer adeus.
Um vento frio vinha do mar e as ondas batiam altas nos arrecifes.
Praia vazia. Alguns andantes pelo passeio, uma babá empurrando o carrinho com um sonolento bebê dentro, uma garotinha brincando com seu cãozinho, outra jogando bola sozinha na areia ainda fria.
Não havia sereias, Iemanjá ou Poseidon para me explicar o que estava acontecendo, por todos os deuses!
Voltei pro carro e liguei o radio, onde alguém cantava que “andou pelas ruas, um insano, um molambo, que queria se atirar no mar só pra se afogar”
Eu.
Freei de súbito, fiz retorno na contra-mão e voltei para casa. Pelo celular, avisei que estava doente e não poderia ir trabalhar. Que remarcassem os pacientes para amanhã (?).
Acelerei o máximo, e um sorriso que estava guardado há 11 meses, se abriu inteiro em minha boca pintada, então repleta de lembranças que vinha escondendo nas gavetas da alma dolorida.
Meu coração saltava que nem pipoca estourando dentro da blusa, dentro do peito. Meus olhos enxergavam toda a beleza do dia. Deus existe. Eu creio. Me agarrei ao crucifixo que sempre trago no pescoço e agradeci por esse momento que nem mais esperava acontecer.
Entrei no prédio como um bólido.
O porteiro tentou me dizer algo, mas disse: “ Depois”, ainda assim, me entregou um envelope amarelo. Nem olhei. O que significa um envelope amarelo numa hora plena destas?
Abri a porta devagar, tirei os sapatos e fui à geladeira e não viu meu bilhete enigmático (“Não lembro o que aconteceu... Me liga pra contar. Beijos. Tua sempre”)
Será que ele já acordou e saiu?
Fui até o quarto. No corredor, o coração descia degraus velozmente até meus pés descalços.
Abri a porta e o vazio me congelou.
Não havia você.
Não havia roupas no chão.
Não havia ar condicionado ligado.
Não havia cheiro de nada.
Meu lençol cor-de-rosa se enroscava nos quatro travesseiros que pareciam rir da minha tolice.
Sentei na cama e larguei no rosto, todas as lágrimas guardadas depois de tantas buscas e sofrimento.
Chegou a hora. O fim do poço é este.
Escondido por trás do edredon, no canto esquerdo do guarda-roupa, estava o meu kit Werther. Retirei as peças:
-um vestido branco
-uma calcinha branca de algodão
-um batom cor-de-boca
-um perfume de rosas
-uma plástica rosa branca
-uma fronha de seda pura
-um bilhete pros meus pais, para meus irmãos e sobrinhos e para meus raros amigos... explicando, justificando, pedindo perdão...
-um papel com todos os códigos e senhas necessárias
-um triste testamento, apenas livros para Anna K., bonecos de pelúcia para o IMEC, coleção de marcadores de livros para Ana P.. As jóias para minha irmã caçula, os CDs pro meu irmão, o violão para minha sobrinha, minhas roupas para minha cunhada. Meu São Jorge para a minha mãe. Minha caneta pro meu pai.
Retirei o copo de cristal da Baviera envolto em papel de seda. Mesma seda com que enrolei um cigarro de maconha e me despedi do antigo vício.
Liguei o som para tocar continuamente Albinoni- Adagio.
Enchi o copo com água Perrier (morro, mas com classe)
Tomei outro banho, com sabonete de morango, passei no corpo óleo de amêndoas com cristais dourados. Vesti o vestido, deitei sobre o travesseiro de plumas e engoli um a um os sessenta comprimidos guardados ao final de cada semana do mês em que não me aparecias, cada um dos dias longe do teu sorriso.
Meus olhos pesaram e comi um tablete de chocolate meio-amargo, e tomei uma taça de vinho tinto.
Acendi um cigarro Carlton. O primeiro e último cigarro que fumei. Será que isso dá uma boa propaganda?
Lembrei de súbito, dos e-mails dos amigos virtuais a quem avisar.
Escrevi com letra trêmula, já quase sem coordenação.
De repente, ao pé da cama, o envelope amarelo.
Sorri e decidi ler.
Preferia ler um poema de Fernando Pessoa, mas a estante agora estava longe e não se pede ter tudo mesmo, não?
Ao abrir o envelope, teu cheiro me invadiu as narinas.
Sabia que seria assim no final.
Quando a minha loucura fosse incontrolável, tudo me traria você.
Com a visão já embaçada, li as palavras escritas com tua letra infantil.
“Mimi, sonhei com você. Sonhei que éramos dois mais uma vez. Foi um sonho lindo e eu não queria ter acordado. Mas acordei e vi que minha vida agora é outra, onde não cabe o amor. Apenas saiba que hoje, quase um ano depois da nossa separação, nós fizemos amor no lugar que você chama de Terra do Nunca e eu chamo de Terra do Sempre, pois sempre vou te amar e um dia vou te buscar lá para ser só minha, como está escrito. Me espera. Te amo. Teu sempre.”
Caí sobre o travesseiro e todas as lágrimas femininas de Eva, Heloísa, Helena, Penélope, Guinevere, Julieta, Desdémona, Lígia, Penélope, Madalena, Joana, Inês... juntaram-se às minhas.
Não lamentei meu ato, pois sei que tua volta duraria uma encarnação e já não posso mais com tanta dor a me dilacerar dia após dia.
Minha cabeça ficou zonza, liguei para minha mãe, disse que a amava e ela não entendeu bem, eu acho.
Liguei para o padre da minha paróquia e pedi que orasse por minha alma eternamente perdida.
Abri a Bíblia e o Salmo que me brotou aos olhos baços, foi o que diz “Senhor, Tu és meu refúgio e minha cidadela”.
Não suportei mais.
Minhas entranhas se revolviam em espasmos e minha boca se contorcia. Todo meu corpo doía, os músculos se contraíam e a cabeça latejava como se fosse explodir num minuto.
Eu não sabia que sofreria.
A respiração foi ficando curta e absorver oxigênio passou a ser uma luta.
Gritei muda pelo ar que não vinha.
Mais espasmos me dilaceravam por dentro e sangue me saía pelos ouvidos e nariz. Fiquei nauseada, tentei levantar. Caí de joelhos sobre o chão liso e frio.
O céu escureceu, ou meus olhos cegaram?
Tudo ficou escuro.
Meu Deus, não quero morrer agora.
Adagio se repetia nas caixas de som que ecoava em meus ouvidos como gritos de almas penadas. Desliguei tudo.
E o silêncio se fez.
A dor era tamanha que achava que não suportaria mais estes vinte minutos proclamados nos estudos da farmacologia da droga que usei.
Arrastei-me pelo corredor, deitei-me no tapete da sala, ao lado dos peixinhos Julio Cortazar e Jorge Luís Borges, que me olhavam inertes e com fome. Eu esquecera de alimentá-los hoje.
Chorei por eles.
Chorei por mim.
Ao longe, o som estridente da minha campainha.
NÃO QUERO SER SALVA!
Pare de tocar quem seja e vá embora.
Mas este grito surdo fez com que eu vomitasse o que não comia há dias.
Na clareza atávica dos que se vêem cara a cara com a morte, arrastei-me até a porta como se fosse um ser apenas tronco e cérebro corroído.
Escalei a porta e abri.
Precisava dizer a alguém que morrer dói, que no fim, todos se arrependem.
Meus olhos cegos de dor e sangue que agora também lhe afluíam além dos ouvidos e nariz, sujando o lindo vestido branco, viram você.
Miragem.
Alucinação.
Desejo de condenado.
Fechei os olhos, virei a cabeça e morri.
Mas antes te ouvi dizer...
“Porque Mimi? Eu pedi pra me esperar que eu iria voltar”.


albanegromonte, no dia da sua morte, em 15 de agosto de 2006.

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