agosto 27, 2006

James Dean, Cronopio Veloz


There was a boy / A very strange and enchanted boy / They say we wandered very far / Very far / Over land and sea. (“Nature Boy”, de Eden Ahbez, 1948)

“Aquele cara tem que parar!”
Mas o cara não parou. E o Ford sedã branco, que inadvertidamente invadira o cruzamento da estrada 466 (hoje 46) com a 41, nas proximidades de Paso Robles, na Califórnia, bateu de lado no Porsche Spider prateado que vinha afrontando o perigo e desafiando o lusco-fusco do sol poente a 140 km por hora. Contemplando os escombros, uma testemunha do desastre comentou: “O Porsche mais parecia um maço de cigarros amassado.” De acordo com a perícia, faltava um minuto para as seis da tarde quando os dois carros se chocaram. Donald Gene Turnunpseed, motorista do Ford, sofreu apenas escoriações na testa e no queixo. O mecânico Rolf Wuetherich baixou hospital com fraturas sérias no queixo, nas pernas e luxações por todo o corpo. Estava ao lado do motorista do Porsche e nunca mais pôde esquecer de seu último grito: “Aquele cara tem que parar!” Mas o cara não parou e James Dean, o estranho e encantado rapaz a seu lado, emudeceu para sempre. Já era noite alta quando a notícia chegou a Hollywood. “O garoto morreu!”, berrou Henry Ginsberg ao telefone. Do outro lado da linha, Stewart Stern nem perguntou de quem se tratava; desligou e foi curtir sua amargura perambulando pelo Sunset Boulevard. Sabia que, mais cedo ou mais tarde, o garoto terminaria entre ferros retorcidos por uma louca disparada. Mas não tão cedo. James Dean, o Rodolfo Valentino da Era do Rock, tinha apenas 24 anos – e somente um filme, “Vidas Amargas” (East of Eden), de Elia Kazan, conhecido do público. Stern, grande amigo de Dean, escrevera o roteiro de “Juventude Transviada” (Rebel Without a Cause), o segundo filme estrelado pelo ator. Ginsberg, produtor de “Assim Caminha a Humanidade” (Giant), a derradeira aparição do ator na tela, fora um dos primeiros a tomar conhecimento do acidente, junto com alguns dos integrantes da equipe do filme, que, naquela fatídica sexta-feira, 30 de setembro de 1955, assistiam ao copião das últimas cenas filmadas, numa cabine da Warner. Fazia uma semana que Dean concluíra sua participação em Giant. Elizabeth Taylor, sua principal estrela, desmaiou nos braços do diretor George Stevens, o arauto da tragédia. Ao funeral, em 8 de outubro, em Fairmont, minúscula cidade rural de Indiana onde o ator fora criado, Liz Taylor limitou-se a enviar flores. Três mil pessoas compareceram. Quando o esquife baixou sepultura, o reverendo Harvey encomendou a alma de Dean com um grandiloqüente clichê cinematográfico: “A carreira dele não terminou. Apenas começou. E agora é o próprio Deus quem dirige a produção.” Mas ainda havia na Terra duas produções inéditas. “Juventude Transviada” estreou no cine Astor, de Nova York, três semanas depois do enterro, oferecendo à posteridade o supremo estereótipo da delinqüência juvenil pré-drogas: “James Dean é Jim Stark, um rapaz que pensa que para ser bom é preciso ser mau.” Explorando o glamour da rebeldia adolescente (na França o filme intitulou-se La Fureur de Vivre), Hollywood lançava um novo subgênero cinematográfico. Em seu rastro nascia a mais necrófila e duradoura idolatria que a sociedade de massa já manipulou. Quase ninguém resistiu. Quatro meses depois, nas página da revista “Cahiers du Cinéma”, François Truffaut, que tinha a mesma idade de Dean, comparava o finado ídolo a uma tenra flor do mal baudelairiana. Em seu artigo semanal para o jornal “Arts” ampliaria a exegese: “Em James Dean a juventude atual se identifica por inteiro, não tanto por causa da violência, do sadismo, da histeria, do pessimismo e da crueldade, mas por outras coisas infinitamente mais simples e corriqueiras: o pudor dos sentimentos, a fantasia permanente, a pureza moral sem relação com o mundo corrente, o gosto eterno da adolescência pelo desafio, pela embriaguez, pelo orgulho e mais o seu desgosto de se sentir fora da sociedade, pela recusa e pelo desejo de nela se integrar, e finalmente pela aceitação – e pela recusa – do mundo tal como ele é.” Com James Dean o jovem atingira finalmente a modernidade. Ser um jovem moderno na década de 50 era ser diferente dos pais do blue jeans ao topete. Data daquela época a expressão conflito de gerações, maná sociológico que Hollywood explorou com as simplificações freudianas exigidas pela concorrência do superficialismo televisivo. Nas telas agigantadas pelo CinemaScope, uma torrente de crises de identidade, ansiedades sexuais reprimidas, lares destroçados, pais castradores e filhos carentes soterrou por uns tempos as questões sociais valorizadas no final da década anterior. “Fale comigo, pai!”, implorava Jim Stark, o rebelde sem causa de “Juventude Transviada”. Mas o pai não sabia como atravessar o abismo que os separava. Cal Trask, o bíblico adolescente de “Vidas Amargas”, também tinha problemas com o pai. Na cena final, os dois ensaiavam um diálogo, paradoxalmente mudo: o pai silenciado por um derrame cerebral, o filho emudecido por um choro convulsivo. Com Cal e Jim, James Dean criou dois majestosos ícones da orfandade afetiva. Jett Rink, o enjeitado que em Giant fazia da personagem de Mercedes McCambridge sua mãe postiça, completaria a galeria. Projeções cinematográficas de si próprio (Dean perdera a mãe aos nove anos, fora abandonado pelo pai e criado pelos tios), Cal, Jim, Jett pareciam só querer da vida o que ensinava a última estrofe da canção “Nature Boy”, a preferida do ator: “A maior coisa que a gente aprende é amar e ser amado.” Quando Giant finalmente estreou, em outubro de 1956, o culto ao transviado número um da América batia recordes de absurdos em todos os quadrantes. “James Dean não morreu!”, proclamavam as publicações sensacionalistas, repetindo a mórbida cantilena de que o ator, com o rosto deformado durante o desastre, se refugiara em local ignorado. Já haviam feito o mesmo com Valentino, 30 anos antes, e repetiriam a dose 21 anos depois com Elvis Presley. As revistas supostamente menos picaretas não ficaram muito atrás. “Você pode fazer James Dean viver eternamente”, prometia na capa a “Motion Pictures”, de outubro de 1956. Como? Caindo na esparrela do lúgubre consumismo desencadeado pela indústria de suvenires: fotos, posters, réplicas da máscara mortuária do ator, anéis supostamente enfeitados com pedaços do mármore de sua tumba, medalhas e chaveiros supostamente forjados com a sucata do Porsche Spider – que, por sua vez, acabaria sendo a mais procurada atração de uma exposição automobilística montada em Hollywood, em dezembro daquele ano. Nenhum outro defunto recebeu tantas cartas (8 mil por mês em 1956) e as que sobravam para os seus comparsas não eram menos doentias. Julie Harris, sua companheira em “Vidas Amargas”, quase foi à loucura de tanto ser indagada sobre como era ser beijada pelo ator. Havia também pedidos de relíquias. De todo jeito e feitio. Até pedaços de alguma parede que ele tivesse tocado servia. Seu túmulo permaneceu pouco tempo a salvo do vandalismo de suas viúvas espirituais. Nem os arquivos da Warner escaparam à pilhagem dos fãs. Quando neles foi garimpar subsídios para seu livro, “James Dean: A Short Life” (Signet, 1975), Venable Herndon levou um susto. Ainda assim produziu uma das mais alentadas biografias do ator. Outra recomendável é a de David Dalton, “James Dean: The Mutant King” (Straigth Arrow Books, 1974). Aos que apreciam divagações esotéricas, Robert Wayne Tysl ofereceu o máximo ao discorrer sobre a “continuidade e evolução num símbolo público”, investigando “a criação e comunicação da imagem de James Dean na América.” Sim, era o que parece: uma tese de doutorado, com 670 páginas, cometida em 1965. No Brasil, como de hábito, reagimos por osmose, envergando jaquetas de nylon cor de salmão, contemplando o mundo de esguelha, esboçando sorrisos espasmódicos e copiando os demais tiques que o felino Dean vampirizara de Marlon Brando, que, apesar de pioneiro, deu o “azar” de morrer velho e gordo. Ou seja, não levou a sério a máxima de Oscar Wilder, que Dean, aliás, adorava citar: “Morra jovem e seja um belo cadáver.” Foi da França, escrita por Yves Salgues, no melhor estilo rosa bom-bom, que chegou até nós a primeira hagiografia do ator, traduzida em 1957 pela editora Vecchi. Só não extasiou quem tivera acesso ao primeiro livro sério de reminiscência sobre o ator, publicado um ano antes por William Bast, companheiro do ator desde os tempos em que ambos estudaram arte dramática na Universidade da Califórnia em Los Angeles. Pela primeira cinebiografia, “The James Dean Story”, documentário dirigido por Robert Altman em 1957, ficamos um bom tempo chupando o dedo. Outros mais foram feitos e afinal vistos (um dos quais incluído como bônus do recém-lançado DVD de “Vidas Amargas”), e o próprio Altman chegou a montar uma peça evocativa, “Come Back to the Five and Dime, Jimmmy Dean, Jimmy Dean”, que em 1982 adaptou ao cinema e aqui exibiram com o título de “James Dean, O Mito Sobrevive”. A mitificação de James Dean atingiu seu ápice no Brasil pouco antes do lançamento comercial de seu último filme. A primeira exibição pública de Giant deu-se na semana de pré-estréias do Festival A História do Cinema Americano, organizado pela Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, em 1958. Às 11h da manhã, as filas já dobravam a esquina mais próxima do cine São Luiz, no Largo do Machado. A platéia assistiu em sepulcral silêncio à longa primeira parte do filme. Nela, Dean não aparece. À medida que o casal Elizabeth Taylor-Rock Hudson ia-se aproximando de Reata, o rancho de Hudson, numa descomunal planície texana, um frisson começou a tomar conta dos espectadores. Estava chegando a hora de Jett Rink entrar em cena. Quando, em close, ele entrava, debruçado disciplicentemente sobre um calhambeque conversível, espiando como um gato vadio a festiva chegada dos seus patrões em lua-de-mel, a platéia vocalizou em uníssono um orgástico “ohhhhh!’ Se ainda vivesse, James Byron (como o poeta favorito de sua mãe) Dean estaria hoje com 74 anos e provavelmente careca. É de se supor que teria feito uma fortuna como ator, eventualmente recuperado os dois Oscars (póstumos) que injustamente perdeu (para Ernest Borgnine, em Marty, e Yul Brynner, em O Rei e Eu) e roubado outros papéis a Paul Newman, que lutou em vão para interpretar Cal Trask em “Vidas Amargas”, mas, com a morte de Dean, herdou-lhe o Billy the Kid de “Um de Nós Morrerá” (The Left-Handed Gun), de Arthur Penn, e o boxeador Rocky Graziano de “Marcado Pela Sarjeta” (Somebody Up There Likes Me), de Robert Wise. Devido a sua instabilidade emocional, é possível ainda que tivesse abandonado o cinema ou sido abandonado por ele. “Ele morreu no momento certo”, comentou Humphrey Bogart, para quem Dean “jamais conseguiria ficar à altura do personagem construído pela publicidade.” Talvez. Para a geração que o venerou, o controvertido Dean foi praticamente tudo: indefeso e viril, adorado e enjeitado, doce e enérgico, selvagem e gentil, desajeitado e gracioso, artificial e natural. Em suma, uma antologia de contradições digna de dois outros astros que lhe foram contemporâneos: Marlon Brando (também criado numa fazenda e amante de motocicletas) e Marilyn Monroe (também orfã e morta precocemente ). Para quem o conheceu na intimidade, tanta adulação nunca fez muito sentido, como se a um mito fosse negado o direito divino de ser egocêntrico, perverso, instável, arrivista, porcalhão, irrascível – e bisssexual. No segundo volume de sua coletânea de escândalos, “Hollywood Babylon”, publicado em 1984, a Candinha gay Kenneth Anger não só confirma que, na véspera de sua partida para a corrida de carros em Salinas, a caminho da qual morreu, Dean participara de uma conturbada festa gay na praia de Malibu, em Los Angeles, como revela outras facetas da promíscua vida sexual do ator. Sadomasoquista, de tanto ser queimado com pontas de cigarro Dean teria ficado conhecido em certos redutos gays como “Cinzeiro Humano”. Ainda segundo Anger, que recomendo ler com um grão de sal, Dean era um viveiro de “chatos” e vivia coçando a genitália, gesto que os menos enturmados confundiam com trejeitos do Actors’ Studio. Durante as filmagens de “Juventude Transviada”, incomodados com as coceiras do ator, Natalie Wood, Sal Mineo e Nick Adams o arrastaram a uma farmácia para um banho de inseticida. “Jimmy não teria passado dos trinta anos”, palpitou Nicholas Ray, o diretor de “Juventude Transviada”. Seus companheiros mais chegados não foram muito além daquela faixa. Sal Mineo e Nick Adams morreram com 37 anos e Natalie Wood, com 43. Morreram jovens e em condições trágicas: Mineo assassinado, Wood afogada e Adams vitimado por uma overdose. Pier Angeli, tida como o único grande amor de James Dean, só conseguiu ânimo para viver até 1971. Tinha 39 anos e matou-se de saudades – ou de arrependimento por ter-se sujeitado à imposição da família, que a obrigou a casar-se com o cantor Vic Damone. Os rebeldes sem causa mas muita “fureur de vivre” não conseguiram atravessar a década de 50 sem traumas irreparáveis. E, em alguns casos, fatais.

Sergio Augusto, Setembro 2005
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