dezembro 26, 2007

Um Chamado João




Carlos Drummond de Andrade




João era fabulista?
fabuloso?
fábula?



Sertão místico disparando no exílio da linguagem comum?



Projetava na gravatinha



a quinta face das coisas,inenarrável narrada?




Um estranho chamado João



para disfarçar, para forçar



o que não ousamos compreender?



Tinha pastos, buritis plantados no apartamento?



no peito?



Vegetal ele era ou passarinho



sob a robusta ossatura com pinta de boi risonho?



Era um teatro



e todos os artistas



no mesmo papel,ciranda multívoca?
João era tudo?
tudo escondido, florindo



como flor é flor, mesmo não semeada?



Mapa com acidentes



deslizando para fora, falando?



Guardava rios no bolso,
cada qual com a cor de suas águas?



sem misturar, sem conflitar?



E de cada gota redigia nome,curva, fim,
e no destinado geral



seu fado era saber



para contar sem desnudar



o que não deve ser desnudado



e por isso se veste de véus novos?



Mágico sem apetrechos,
civilmente mágico, apelador



de precípites prodígios acudindo



a chamado geral?
Embaixador do reino



que há por trás dos reinos,
dos poderes, das



supostas fórmulas



de abracadabra, sésamo?



Reino cercado



não de muros, chaves, códigos,
mas o reino-reino?



Por que João sorria



se lhe perguntavam que mistério é esse?



E propondo desenhos figurava



menos a resposta que



outra questão ao perguntante?



Tinha parte com... (não sei o nome) ou ele mesmo era



a parte de gente



servindo de ponte



entre o sub e o sobre



que se arcabuzeiam



de antes do princípio,
que se entrelaçam



para melhor guerra,
para maior festa?



Ficamos sem saber o que era João



e se João existiu



de se pegar.




(publicado originalmente no Correio da Manhã, em 22/11/1967, três dias após a morte de Guimarães Rosa)

Nenhum comentário: