setembro 01, 2006

Revenant


isso em mim que hoje anseia partida chamo de quase querer.
e é quase querendo
que salto do tigre que montava
liberto a ave azul que trazia no parapeito da janela
e deixo ir pro sul o sol morno que guardava no bolso da blusa
- para aquecer o lado esquerdo do peito
onde havia um coração e hoje mora um pequeno esquimó
com seu pinguim de estimação.
atravesso a rua sem olhar o sinal
carro de vidros abertos
portas sem chaves
janelas sem proteção
fios elétricos desencapados.
meu revolver tem oito balas.
seis no tambor e duas na minha mão
meu armário, sessenta e três comprimidos aditivados
minha gaveta, vinte e duas facas
minha bolsa, dois canivetes
mas não uso echarpes,
não tenho forno a gás,
não moro num nono andar em Copacabana,
nenhum rio passa atrás da minha casa
ando às vezes na beira-mar,
catando estrelas
vestindo um pijama
e com um relógio de ouro no pulso esquerdo
pra não me perder no abismo
que a Rainha das Águas cria em noites escuras
tenho medo de cachorros pequenos
mas crio um dragão embaixo da cama.
toda noite antes de dormir dou uma volta na via-láctea
pra ele não entrevar as asas.
meu dragão tem olhos cor de violeta
e me deu um anel de prata que uso no anular do pé esquerdo.
não há flores nos meus jarros.
nem peixes nos meus aquários
e há tantos livros que não li
que chego a ter medo de morrer,
ou ficar cega antes de conhecê-los
um dia sonhei que era uma magnólia
e me deitava na relva com o orvalho a me acariciar
foi numa noite esquisita, em que tive sono e dormi
mas acordei gente
e ainda mais cansada das horas
trago uma cruz de pedras no umbigo
e comprei um Fenix colorido
que vai morar na minha nuca
tem dias que parecem inverdade
de tão tristonhos e escuros
nestes dias eu ergo uma taça de vinho
brindo a todos os enganos que tive
releio um poema de Bandeira
folheio Cortazar
acendo um cigarro e espero a dor passar.
a dor nunca me criou morada.
disso eu sempre soube, mas não dizia.
aranhas não cabem neste coração marcado,
mas guerreiro.

albanegromonte, janeiro, 8, sagrado ano de 2oo6

*revenant: termo francês, sem correlato em português, que significa "aquele que está de volta", "aquele que volta da morte"

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