julho 22, 2006

Folie


acordada, estava dormindo. caminhou com pés descalços pelo chão frio da casa. abriu a porta dos fundos, desceu escadas, atravessou portão e pairou cor púrpura na avenida calma àquela hora da madrugada, ultrapassando os sinais amarelos e brilhantes. um guarda cético que passava naquele instante, viu aquela mulher pendurada em nada, com pés brancos de plantas sujas, cabelos negros, olhos abertos e fechados, como se fosse possível tudo num só olhar , flutuando em cores pálidas, em perfumes secos. coçou os olhos, o guarda, fez o sinal da cruz e jurou nunca mais beber. pelas nuvens carregadas da noite sul americana, pingavam gotas vermelhas de chuva. coágulos. e ela, desceu à calçada, ajeitou as alças da camisola e pôs-se a andar até a praia. ouviu sussurro da Rainha do mar, que dizia que voltasse, e dos raios que cortavam o céu ensanguentado, ouvia a espada da Rainha da tempestade, cortar os paralelepípedos à sua frente, criando vãos e pequenos abismos, atrasando seu passo pra ver se amanhecia, e a criatura não conseguisse atravessar estas paredes da sua inocente loucura. mas como quem joga amarelinha, ela pulava sorrindo em contralto, cada pedaço de chão aberto. uma criança chorou ao longe, um gato atravessou-lhe o caminho e se enroscou em suas pernas tentando fazê-la cair. e de joelhos, ela lhe deu o seio. ele bebeu seu néctar lácteo e saiu feliz, esquecido da sua missão. e a chuva vermelha continuava sobre a cidade, sobre as pontes, rios e overdrives. e enquanto o flash de um fotógrafo andarilho iluminava as letras do jornal passado, um pastor de ovelhas saiu de um poema com seu rebanho e atravessou a rua que a separava do mar. e como se fosse bandeira hasteando-se, ela solene subiu em um poste e volteou as lãs que se soltavam dos animais em fila dupla. o Cristo que trazia no umbigo, arrancou-se da cruz e com as mãos feridas transformou em brasas seus olhos acordados que dormiam. mas ela chorou lágrimas de rio que é água doce, e se achou de novo a voar. e na areia pousou. primeiro um pé, depois o outro, e o corpo todo inteiro a sonhar. deitou-se na areia macia, olhou pro céu que se alaranjava que nem a cor do girassol que o pintor sem orelha um dia falou numa canção que em vez de nome, tinha número e dizem, que seu autor se foi, mas um poeta outro dia tomou vinho com este mesmo menino que tocava piano, junto a uma lareira e com um cachorro aos pés. parece então que não morreu. uma estrela-do-mar, caminhou até ela, e cochichou algo no seu ouvido. e ela num salto de trapezista, sumiu no primeiro raio de sol que secava os coágulos da chuva que se ficaram nas folhas e árvores, e ressurgiu na própria cama, envolta em lençóis de cetim, com os pés descobertos imaculadamente brancos. em sonho sorriu um sorriso quase feliz de quem recebeu carta de longe. seu respirar ritmou-se com o canto do rouxinol que pousou na janela. uma violeta se abriu, o galo cantou, o vento assanhou as páginas de um livro de poesia. e o dia se anunciou com a batida de asas de um colibri que por ali estava, tentando avisar que a vida venceu.

albanegromonte

Homenagem implícita:Win Wenders, Fernando Pessoa, Van Gogh, Mozart, Frida Kahlo, Chico, Iemanjá, Iansã, JM Restivo Braz, Adélia Prado e Eduardo Barrox.

Nenhum comentário: