setembro 26, 2007

Rainbow


Vida minha que se impele,

E em ti, reconheço o passado de tudo que quis.

Teu olhar no meu, tua voz rouca e aquela coisa toda que me inspira dizeres madrugadas adentro.

Rouxinol pousa em coração meu

E pressinto o canto acalanto que me dirá que amanheceu, mas não.

Quero teu peito em cabeça minha que chora de insegurança tão tola.

Não acorda, meu amor.

Que seja sempre madrugada em teu sonho disperso em gestos e cainhos que me dás, enquanto sono te pertence e domina.

Amor meu te guarda de males sem fim.

E guardiã de desejos, sou.

Tua gueixa, deixa.

Te beijo em todos os tons e cheiros que de mim se fantasiavam as coisas insanas que nem sabia e eram.

Teu olho direito rebaixa e sinto tremores de frio e terremotos se fazem em estruturas de mim que nem mais sei.

És.

Apenas isto e só.

Em mim, em alma engatilhada pra desistir que hoje busca distância daquela tal indesejada.

Desarrumo a mesa, a cama e nada se prepara para ela. A tal.

Não mais.

Vida em mim se faz em teu sorriso e olhar sobre os ombros que cansado de lutas antigas, relata: Venci.

Abismos não mais, só se

(teu amor me ferir)

E sei que não

Então

Visto a alma com a cor feliz amarelo girassol e sonho.

Um dia serás meu como sou tua, já.


albanegromonte

setembro 25, 2007

Lullaby


quando a noite chega, meu coração fio desencapado galopa feliz, pois sabe que logo se abrigará no peito cantado em verso e prosa como o melhor lugar do mundo.

horas passeiam rápidas e ponteiros cruzam o Tempo, enquanto olho através da penumbra o teu rosto amado, o teu rosto querido.

ao longe e baixinho, notícias em língua estrangeira penetram meus tímpanos adoçado com tua palavra morna entre o sonho e o real.

"mais que tudo"

e é minha pele morna que encosta nos teus pêlos em carícia de silêncio que só quem ama sabe decifrar.

olhos teus fechados, mãos tuas tomam as minhas e as recolhem em pétalas de ternura.

nunca tive um amor assim, e tenho até medo de morrer.

a madrugada avança e vigio tua respiração, o franzir da testa em meio a um sonho. em que sonhas e com quem.

tenho ciúmes e quase te acordo.

mas resisto e me mantenho totem de carne a velar teu sono com canções sussurradas como se alma minha que hoje é tua, fosse náufraga que se acolhe em ilha quase porto.

meus olhos fecham cortinas de cílios, hesito mas cedo.

raios incipientes de luz solar se espalham em nossos lençóis e recolho o resto de lua pra adormecer um pouco e poder ver chegar o dia, quando meu coração fio desencapado galopar em teu sorriso sol e teu abraço me acolher nas horas poucas que são nossas, além da noite que se foi e se prepara para mais.


albanegromonte


Grão



olho a tua fotografia, que marca as páginas do livro que leio
- livro que me deste
e chego a acreditar em sonhos.
só posso ter sonhado que um dia te tive nos meus braços, que acariciei teus cabelos nevados, que olhei em teus olhos e me vi refletida neles.
só pode ter sido sonho,
ou não seria apenas esta tua imagem roubada, estática aqui nas minhas mãos a me sorrir, ou a sorrir pra alguém que pilotava a câmera.
na real, somos apenas palavras soltas pelos espaços piroloucos da realidade virtual,
e a cada dia mais distantes, mais sombrios, mais grão de areia.


albanegromonte

setembro 21, 2007

Palavras

Julio aos 2 anos de idade.


"Yo creo que desde muy pequeño mi desdicha y mi dicha al mismo tiempo fue el no aceptar las cosas como dadas. A mí no me bastaba con que me dijeran que eso era una mesa, o que la palabra "madre" era la palabra "madre" y ahí se acaba todo. Al contrario, en el objeto mesa y en la palabra madre empezaba para mi un itinerario misterioso que a veces llegaba a franquear y en el que a veces me estrellaba.

En suma, desde pequeño, mi relación con las palabras, con la escritura, no se diferencia de mi relación con el mundo en general. Yo parezco haber nacido para no aceptar las cosas tal como me son dadas."


Julio Cortazar

setembro 20, 2007

Futuros Amantes


"Eu tava mexendo no violão, começando a fazer a melodia, e a primeira imagem que apareceu foi exatamente esta: uma cidade submersa, isolada de tudo. Porque, cantarolando, parecia que a música queria dizer isso. Eu tinha que ir atrás da explicação dessa cidade submersa. Aí eu coloquei os escafandristas, e surgiu a história de um amor adiado, um amor que fica para sempre. Essa idéia do amor como algo que pode ser aproveitado mais tarde, que não se desperdiça. Passa-se o tempo, passam-se milênios, e aquele amor ficará até debaixo d'água. Um amor que vai ser usado por outras pessoas, um amor que não foi utilizado porque não foi correspondido, e então ele fica ímpar, pairando... Esperando que alguém o apanhe e complete a sua função de amor".





Não se afobe, não

Que nada é pra já

O amor não tem pressa

Ele pode esperar em silêncio

Num fundo de armário

Na posta-restante

Milênios, milênios

No ar
E quem sabe, então

O Rio será

Alguma cidade submersa

Os escafandristas virão

Explorar sua casa

Seu quarto, suas coisas

Sua alma, desvãos
Sábios em vão

Tentarão decifrar

O eco de antigas palavras

Fragmentos de cartas, poemas

Mentiras, retratos

Vestígios de estranha civilização
Não se afobe, não

Que nada é pra já

Amores serão sempre amáveis

Futuros amantes, quiçá

Se amarão sem saber

Com o amor que eu um dia

Deixei pra você


Chico Buarque, 1993

setembro 19, 2007

Um Andarilho


Esta manhã, antes do alvorecer, subi numa colina para admirar o céu povoado.
E disse à minha alma:
- Quando abarcarmos esses mundos e o conhecimento e o prazer que encerram,
estaremos finalmente satisfeitos?
E minha alma disse:
- Não. Uma vez alcançados esses mundos prosseguiremos no caminho.

Walt Whitman

setembro 18, 2007

Para Lá De Ti

ph Bojan Mustur
Não te enganes sobre as minhas lágrimas:

Vale mais que os que amamos partam quando ainda conseguimos chorá-los.

Se ficasses, talvez a tua presença, ao sobrepor-se-lhe,enfraquecesse a imagem que me importa conservar dela.

Tal como as tuas vestes não são mais que o invólucro do teu corpo,assim tu também não és mais para mim

do que o invólucro de um outro que extraí de ti e que te vai sobreviver.


Marguerite Yourcenar

Encruzilhadas

ph Tom Ross
- Podia-me dizer por favor, qual é o caminho para sair daqui? - Perguntou Alice.
- Isso depende muito do lugar para onde você quer ir. - disse o Gato.
- Não me importa muito onde... - disse Alice.
- Nesse caso não importa por onde você vá. - Disse o Gato.
- ...contanto que eu chegue a algum lugar. - acrescentou Alice como explicação.
- É claro que isso acontecerá. - Disse o Gato - desde que você ande durante algum tempo.

Alice no País das Maravilhas - Lewis Carroll

Faz De Conta


Faz de conta que ela era uma princesa azul pelo crepúsculo que viria, faz de conta que a infância era hoje e prateada de brinquedos, faz de conta que uma veia não se abrira e faz de conta que sangue escarlate não estava em silêncio branco escorrendo e que ela não estivesse pálida de morte, estava pálida de morte mas isso fazia de conta que estava mesmo de verdade, precisava no meio do faz-de-conta falar a verdade de pedra opaca para que contrastasse com o faz-de-conta verde cintilante de olhos que vêem, faz de conta que ela amava e era amada, faz de conta que não precisava morrer de saudade, faz de conta que estava deitada na palma transparente da mão de Deus, faz de conta que vivia e que não estivesse morrendo pois viver afinal não passava de se aproximar cada vez mais da morte, faz de conta que ela não ficava de braços caídos quando os fios de ouro que fiava se embaraçavam e ela não sabia desfazer o fino fio frio, faz de conta que era sábia bastante para desfazer os nós de marinheiros que lhe atavam os pulsos, faz de conta que tinha um cesto de pérolas só para olhar a cor da lua, faz de conta que ela fechasse os olhos e os seres amados surgissem quando abrisse os olhos úmidos da gratidão mais límpida, faz de conta que tudo o que tinha não era de faz-de-conta, faz de conta que se descontraíra o peito e a luz dourada a guiava pela floresta de açudes e tranqüilidade, faz de conta que ela não era lunar, faz de conta que ela não estava chorando.


Clarice Lispector

Ao Meu Amado

Entraste na casa do meu corpo,
desarrumaste as salas todas
e já não sei quem sou, onde estou.
O amor sabe.
O amor é um pássaro cego
Que nunca se perde no seu vôo.

Casimiro de Brito

Poesia em Prosa


O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato. O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço. O amor comeu meus cartões de visita. O amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome.
O amor comeu minhas roupas, meus lenços, minhas camisas. O amor comeu metros e metros de gravatas. O amor comeu a medida de meus ternos, o número de meus sapatos, o tamanho de meus chapéus.
O amor comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos.O amor comeu meus remédios, minhas receitas médicas, minhas dietas. Comeu minhas aspirinas, minhas ondas-curtas, meus raios-X. Comeu meus testes mentais, meus exames de urina.
O amor comeu na estante todos os meus livros de poesia. Comeu em meus livros de prosa as citações em verso. Comeu no dicionário as palavras que poderiam se juntar em versos.
Faminto, o amor devorou os utensílios de meu uso: pente, navalha, escovas, tesouras de unhas, canivete. Faminto ainda, o amor devorou o uso de meus utensílios: meus banhos frios, a ópera cantada no banheiro, o aquecedor de água de fogo morto mas que parecia uma usina.
O amor comeu as frutas postas sobre a mesa. Bebeu a água dos copos e das quartinhas. Comeu o pão de propósito escondido. Bebeu as lágrimas dos olhos que, ninguém o sabia, estavam cheios de água.
O amor voltou para comer os papéis onde irrefletidamente eu tornara a escrever meu nome.O amor roeu minha infância, de dedos sujos de tinta, cabelo caindo nos olhos, botinas nunca engraxadas. O amor roeu o menino esquivo, sempre nos cantos, e que riscava os livros, mordia o lápis, andava na rua chutando pedras. Roeu as conversas, junto à bomba de gasolina do largo, com os primos que tudo sabiam sobre passarinhos, sobre uma mulher, sobre marcas de automóvel.
O amor comeu meu Estado e minha cidade. Drenou a água morta dos mangues, aboliu a maré. Comeu os mangues crespos e de folhas duras, comeu o verde ácido das plantas de cana cobrindo os morros regulares, cortados pelas barreiras vermelhas, pelo trenzinho preto, pelas chaminés. Comeu o cheiro de cana cortada e o cheiro de maresia. Comeu até essas coisas de que eu desesperava por não saber falar delas em verso.O amor comeu até os dias ainda não anunciados nas folhinhas. Comeu os minutos de adiantamento de meu relógio, os anos que as linhas de minha mão asseguravam. Comeu o futuro grande atleta, o futuro grande poeta. Comeu as futuras viagens em volta da terra, as futuras estantes em volta da sala.
O amor comeu minha paz e minha guerra. Meu dia e minha noite. Meu inverno e meu verão. Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte.


João Cabral de Melo Neto

Capítulo 7



Toco a sua boca, com um dedo toco o contorno da sua boca, vou desenhando essa boca como se estivesse saindo da minha mão, como se pela primeira vez a sua boca se entreabrisse, e basta-me fechar os olhos para desfazer tudo e recomeçar. Faço nascer, de cada vez, a boca que desejo, a boca que a minha mão escolheu e desenha no seu rosto, e que por um acaso que não procuro compreender coincide exatamente com a sua boca, que sorri debaixo daquela que a minha mão desenha em você.
Você me olha, de perto me olha, cada vez mais de perto, e então brincamos de cíclope, olhamo-nos cada vez mais de perto e nossos olhos se tornam maiores, se aproximam uns dos outros, sobrepõem-se, e os cíclopes se olham, respirando confundidos, as bocas encontram-se e lutam debilmente, mordendo-se com os lábios, apoiando ligeiramente a língua nos dentes, brincando nas suas cavernas, onde um ar pesado vai e vem com um perfume antigo e um grande silêncio. Então, as minhas mãos procuram afogar-se no seu cabelo, acariciar lentamente a profundidade do seu cabelo, enquanto nos beijamos como se tivéssemos a boca cheia de flores ou de peixes, de movimentos vivos, de fragância obscura. E se nos mordemos, a dor é doce; e se nos afogamos num breve e terrível absorver simultâneo de fôlego, essa instantânea morte é bela. E já existe uma só saliva e um só sabor de fruta madura, e eu sinto você tremular contra mim, como uma lua na água.


Júlio Cortázar in O Jogo Da Amarelinha

setembro 17, 2007

Monólogo

espelho meu que mostra as marcas do tempo que eu pensava nunca chegar. relato amargo que denuncia a minha alma carregada de angústia pelo tempo perdido, pelo tempo todo que tive pra te arrancar do peito e não consegui. reina absoluta em meu corpo a vontade de te ver ainda uma vez, ainda que pra ferir, ainda que pra machucar. olhos embaçados de lágrimas, velejam na água toda que derramo nas páginas do livro inacabado. pássaro negro canta pra mim na janela. não abro a cortina. não sei se é noite ou dia. canto embalada na lembrança antiga como o anel de esmeralda que me deste no momento da partida. nuvens balançam a porta fechada e a felicidade eu busco nas esferas azuladas que me percorrem a garganta, zelando pela minha incoerência que é o que me mantém distante do abismo. onda do mar bate nas paredes do quarto fechado e rio do palhaço que aparece vestido de morte no meu espelho mentiroso. sorrio, e é rio nervoso que corre pelas minhas veias que se derrama em fios vermelhos pintando o mosaico branco da banheira desenhando um mapa desta vida minha que se esvai pelo nada que me deste, por tudo que te quis e te fiz. arrasto a dor pelas frestas do chão e te vejo chorando pelo espelho, que agora sim, me mostra como estou. sou jovem, sou bela e te tenho a meu lado. não chora, meu amor. sorria meu amor. acaba tudo em tão pouco tempo e eu perdida desde então... finjo que fecho os olhos para não te ver, mas te vejo através da íris que não se ampara na claridade das pálpebras nuas. o palhaço grita: vai! e tu te vais pelo espelho amarrotado. acho que vai feliz. minha alma se detém no ar e me olha livre. agora poderá ser canção, árvore ou ventania. minha alma não quer mais ser gente. minha alma quer viver e eu já morri há tanto que nem sei se isso que conto é daqui ou do outro lado que a gente repete até não querer mais se livrar da dor de ser infeliz nesta terra de tanta provação. que se repete tanto que até se esquece e repete, repete, repete...

albanegromonte

setembro 13, 2007

Viejo Brujo


Trecho de “O Enigma da Poesia”, do livro ‘Esse Ofício do Verso”, de Jorge Luis Borges


Penso que a primeira leitura de um poema é a verdadeira, e depois disso que nos iludimos acreditando que a sensação, a impressão, se repete. Mas, como disse, pode ser mera fidelidade, mero truque da memória, mera confusão entre nossa paixão e a paixão que sentimos uma vez. Portanto, pode-se dizer que a poesia é uma experiência nova a cada vez. Cada vez que leio um poema, a experiência acaba ocorrendo. E isso é poesia. (...) Uma vez escrito, esse verso não me serve mais, porque, como já disse, esse verso me veio do Espírito Santo, do subconsciente, ou talvez de algum outro escritor. Muitas vezes descubro que estou apenas citando algo que li tempos atrás, e isto se torna uma redescoberta. Melhor seria, talvez, que os poetas fossem anônimos. (...) Para concluir, trago uma citação de Santo Agostinho que, a meu ver, vem bem a calhar. Disse ele; “O que é o tempo? Se não me perguntam o que é o tempo, eu sei. Se me perguntam o que é, então não sei”. Sinto o mesmo em relação à poesia.

setembro 12, 2007

A Lebre Na Parede




A Lebre acordou triste.


Chovia no mar em frente à caverna e dentro do seu coração.


O dia iniciou tão solitário...


Apenas o Cronopio, bracitos para cima, oferecia-lhe alento, mas ela sorriu-lhe um sorriso tão ausente que ele se encolheu e foi ler um livro.


A Lebre passeou pela caverna, arrumou suas coisinhas numa sacolinha cor-de-laranja e pensou em partir.


Então um raio de sol invadiu a varanda, banhando a violeta que se chama Laurinha, e a Lebre desistiu de desistir.


Desarrumou a sacolinha, comeu uma barra de chocolate e enxugou as lágrimas com seu lencinho cor-de-rosa.


Mas continuou triste, e se encostou na parede para pensar.


LadyCronopio

BeaT Texto


Beat Generation Promo Cards by Jesse Crumb

"MENTES! Novos amantes! Geração louca! Descendo as pedras do Tempo. Risadas realmente sagradas no rio! Eles viram tudo! Os olhos alucinados! Os berros sagrados! Eles deram adeus! Eles saltaram do telhado! Para a solidão! Acenando! Carregando flores! Descendo o rio! Desaguando nas ruas!”


Com quantos cavaleiros se faz uma távola? Com quantos homens se faz uma geração? Cinco ou seis pessoas, que cabem numa sala de estar, constituem um exército? Por quanto tempo se diz durar uma geração? Quantas décadas depois, ao se ver um talento nítido herdeiro daquela histórica declamação do Uivo do homem-menino&lobo embaixo da luz vaga, enquanto os ouvintes bebiam vinho de oitenta e três cents, ressurgir qual anjo de letras disformes e ilegais que se formam na mente, sem mentiras na digressão natural do conceito desfeito do que é o que não se conclama, só se difama, como se fosse no príncipio, como se San Francisco fosse aqui... talvez o outro Francisco, que corta o sertão do Brasil... mas nem lá chega a informação deste grito abuso de poesia narrada, complexamente absurda que rompe grilhões de métrica, pontuação e sequência. O anjo que cai, grita e lança flecha de heroína na veia do demente mendigo que dorme na calçada da Igreja; e o Padre (Santo Padre!), vira a cabeça, vomitando a hóstia consagrada com asco da fedentina que vem dos trapos do bicho que há por trás do homem caído na frente da casa de Deus. E Deus não estava em casa pra abrir as portas quando o mendigo estendeu as mãos e o Padre escarneceu da flecha fincada em sua veia, sem saber que era um anjo que enviava estas setas-missivas-catástrofe dia&noite aos heróis daquele Planeta amargurado que se chamava Terra. “Poetas são amaldiçoados, mas não são cegos”. E o cheiro de gás e a black rain caindo sobre a tranquila Hiroshima transformada em rosa pelo sopro do dragão ocidental que tinha o nome da mãe, que abençoava em seu cantinho o parir da bomba maldita sobre os olhinhos enviesados da criança que gritava: “Mamãe está tão quente aqui, e eu não vejo nada”. Mas essa história veio antes que o grito compassado do bater beat dos corações de cavaleiros apocalípticos que se todos unificados cabiam numa mesa de bar vagabundo na Rota 66, nas páginas de um livro escrito em três dias, num urro de pantera ou num rabo de raposa que envolve o globo terrestre...imagina se deteriam o Leviatã que habitava suas próprias mentes florescentes de palavras e sons e imagens... ah, mas então era tudo tão inverossímil que até o jovem Rei Lagarto se vestiu de couro e proclamou nas três línguas que os súcubos falam, que havia um jardim muito bonito e que se percebia melhor se se ouvisse Carmina Burana ou Albinoni por trás... e cantando alto e declamando em voz baixa fez voltar da África o poeta desiludido que não se acreditava mais capaz de escrever e mostrou pra ele, que a tal geração comportada num sofá, era o resultado das suas viagens francesas ao Inferno. Foi assim que da mistura de tudo. Uma costeleta aqui, uma camiseta ali, um grito, um orgasmo, um bêbado, uma meia de seda rasgada, um tapa na cara, o repúdio da elite, o poeta francês, o ídolo de rock, o professor frustrado, Paris em festa, cubismo, surrealismo, Picasso, um poeta canhoto, uma peruca, um par de óculos de aviador, um solo de sax, um negro cantando godspell, uma branca rosnando um blues nas derivações latinas, uma girafa cega, um livro do escritor argentino, um tango na parede, uma carnificina, um tiro no ouvido, uma poeta que se queima e incendeia a própria beleza, um retrato na parede, um sussurro de leão enjaulado, uma outra poeta que se joga inteira no gás da cozinha e frita os sonhos de ser feliz, como bolinhos de chuva que a tia das montanhas ensinou a fazer, a doença nova que matou os imorais que ousaram romper os grilhões do certo&errado, o ornitorrinco sem orelhas, o metrô assustado, a nuca do eletricista latino com a jaqueta errada e com visto vencido, o duelo dos titãs patéticos na TV, o talento histriônico do político que envergonhava e agora dignifica, a palavra criada, jogada na sarjeta do entedimento, o filósofo rosnando das teorias banalizadas no programa de entretenimento, a empregada doméstica ganhando sózinha o prêmio da loto e morrendo atropelada na saída do banco, o operário em construção sem proteção voando pelos ares e virando samba-enredo do próximo carnaval, o lixo salvador de vidas, o catador bebendo o resto da Pepsi no monturo e dizendo numa careta que prefere Coca-Cola, o cigarro que mata e gera empregos, o presidente viajante, o outro que pensa que o mundo é um video game, a atriz de cinema de sandália havaiana, a princesa que morreu, o conto de fadas sem final feliz, o médico surdo, o sangue na boca do vampiro, a boneca sem braços nas mãos da garotinha que chora lágrimas de barro pela face que a sociedade sujou, a inocência perdida, o grafite da revista virando movie, Blow Up. clic!... Marlon Brando, Brigite Bardot, bicho de pêlo pelado em meio à neve, James Dean, NY, selvas de concreto renascendo nos labirintos que Teseu não consegue entrar, Minotauro, Ulisses, Tróia, Cruzadas, Inquisição Santa queimando bruxas inocentes... Foi assim que surgiu o conceito beat que não tem mais começomeio&fim depois que este século se iniciou e todo o passado foi igualado ao presente&futuro, ficando todas as marcas indeléveis, marcas de água, fogo e ar, dos inventores de 50, dos inspiradores desde os rupestres e dos novos influenciados e influentes categóricos na arte de dizer não a todas as convenções e falta de liberdade. Pois ser beat é bater na cara da falsa moral e consciência, é amargar a dor de ser poeta no mundo concreto e ácido e sorrir com ironia de tudo isso, sabendo que beat é só um grito solto dentro da alma que corre além do corpo e do sangue contaminado pelo Tempo.
"Aparentemente sou alguma espécie de agente de outro planeta. Mas não tive as minhas ordens decodificadas ainda”.


* citações de versos da geração beat, homenagem subliminar a Rimbaud, sensações diante de documentário sobre o holocausto no Japão, CPI, cena vista na saída de casa, ouvindo The Doors lembrando que Jim se dizia o Rei Lagarto, tentando dizer o quanto gosto desta linguagem e enfim agradecendo ao Eduardo por me iniciar nos caminhos da beat generation.


albanegromonte, Recife, agosto de 2005 para Eduardo Barrox

setembro 11, 2007

Inspiração


"... a maioria dos marujos leva, por assim dizer, uma vida sedentária. Eles sempre se sentem em casa, pois sua casa sempre os acompanha - o navio; bem como seu país - o mar. Um navio é muito parecido com outro, e o mar é sempre o mesmo. Num ambiente imutável, os litorais estrangeiros, as fisionomias estrangeiras, a variada imensidão da vida - tudo passa imperceptível, velado não por um misterioso sentido, mas por uma ignorância levemente desdenhosa; pois não existe mistério para um homem do mar, a não ser o próprio mar, que é senhor de sua existência e inescrutável como o Destino. Quanto ao resto, nas suas horas de folga, uma caminhada casual, ou uma eventual bebedeira em terra bastam para revelar-lhe o segredo de todo um continente - e geralmente acha que o segredo não vale a pena ser conhecido. As histórias dos homens do mar têm uma simplicidade direta, cujo significado cabe inteiramente na casca de uma noz partida".


Joseph Conrad, em "O Coração das Trevas".

setembro 10, 2007

Amore Mio

pois se era tudo breu naqueles idos de setecentas e tantas noites que passamos rente, feito mão de tinta, sem nos lembrarmos sequer nossos nomes, ao te rever fez-se Luz, e me embriaguei me afoguei me derramei e me desarmei no abismo deste teu olhar emocionado quase esverdeado que me faz tremer pernas e coração, e olha que já nem sou assim mais tão criança pra tremer por olhares e coisas...
mas a teu lado me dá um não-se-quê de felicidade enxuta, com cheiro de bolo saindo do forno, um pinguinho de chuva nos cabelos segundos antes de abrir o portão da casa e ficar na varanda deitada na rede, vendo o aguaceiro cair do céu no chão de pedrinhas que tem bem na frente do meu olhar que se espalha em pedaços de saudades de todos os segundos que tenho quando não estou a teu lado...
e como é bom te olhar bem dentro destes olhos jeito de passado meu, e arriscar o salto a queda a vertigem a tontura de amar sem medo de cair ou de se ferir pois tudo já passou e só agora é que sei que ser feliz é assim:
feito quando estou em teu peito lugar melhor do mundo, e ajeito um meio sorriso pra te dizer que te amo mais que tudo, muito pra sempre e demais. feito quando te beijo e mergulho na tua alma, que me prendo na palma da tua mão e sinto teu cheiro em meu nariz...
então vem teu gosto de fruta madura mordida polpuda fruta que se desfaz em pele e pêlos pela minha morenice de lá para cá. e em suspiros dissonantes recrio a canção que era de nós dois o ponto cardeal.
a quilha corta as ondas e o mar parece um carrossel onde nossos sonhos vagam pelas ondas embaixo de uma lua que não tem mais tamanho.
somos vela barco vela mar vela vento.
tempestades não mais.
assim é, Príncipe da minha história reversa anteversa que hoje se concretiza e se ilumina em teu abraço teu beijo teu sorriso e em ti para quem sou a de ontem hoje amanhã e noutras vezes que se virão.
eu sei.
e tu também.
e agora te espero na escada, pertinho da praça onde chorava um menino e não mais.
o cinema fechou
meu amor pétala pérola encravada em carne se abriu para teu viver olhar sentir
meu amor é teu.
toma-o.

albanegromonte

Letras&Imagem


pode nem sempre ser assim; e eu digo

que se os teus lábios, que amei, tocarem

os de outro, e os teus dedos fortes e meigos cingirem

o seu coração, como o meu em tempos não muito distantes;

se na face de outro os teus suaves cabelos repousarem

nesse silêncio que eu sei, ou nessas

palavras sublimes e estremecidas que, dizendo demasiado

ficam desamparadamente diante do espírito vozeando;


se assim for, eu digo se assim for -

tu do meu coração, manda-me um recado;

que eu posso ir junto dele, e tomar as suas mãos,

dizendo, Aceita toda a felicidade de mim.

Então hei-de voltar a cara, e ouvir um pássaro

cantar terrivelmente longe nas terras perdidas.


e.e. cummings

Pois é...


"Mas o que vou dizer da Poesia? O que vou dizer destas nuvens, deste céu? Olhar, olhar, olhá- las, olhá-lo, e nada mais. Compreenderás que um poeta não pode dizer nada da poesia. Isso fica para os críticos e professores. Mas nem tu, nem eu, nem poeta algum sabemos o que é a poesia."

Federico Garcia Lorca

setembro 05, 2007

Verso Cabralino


O Artista Inconfessável


Fazer o que seja é inútil.

Não fazer nada é inútil.

Mas entre o fazer e não fazer

mais vale o inútil do fazer.

Mas não, fazer para esquecer

que é inútil: nunca o esquecer.

Mas fazer o inútil sabendo

que ele é inútil, e bem sabendo

que é inútil e que seu sentido

não será sequer pressentido,

fazer: porque ele é mais difícil

do que não fazer, e dificil

- mente se poderá dizer

com mais desdém, ou então dizer

mais direto ao leitor Ninguém

que o feito o foi para ninguém.


João Cabral de Melo Neto

setembro 04, 2007

Amor Menor


inevitável a dor que acompanha
cada silêncio que sopras em suaves desvios de mim.
e há noites, que nem essa, quando a Lua me empurra mar adentro
e que vejo com a claridade dos loucos
o quanto preciso de alforria.
se é tudo que dizem as torcidas que vestem minha camisa,
liberta meu sentimento.
me manda pra qualquer lugar onde teu olhar não me alcance,
lugar qualquer onde eu ainda me veja e possa sobreviver à danação que é pensar que somos dois,
quando carrego sozinha
todo bem-querer, todo insistir, todo abrir coração&alma em magnólias envenenadas por teu descaso e desculpas ilógicas.
e se for mesmo verdade o que leio nas entrelinhas dos quadros que passeiam inertes de ti no meu olhar encoberto de óculos
põe aqui tua mão na minha,
e devagar, como se dá notícia de morte
confirma o desencanto
e me liberta de ti.

albanegromonte.

Das Hostes Pernambucanas

(Tela “Cidade Azul”, de Henri Matisse)

Soneto Do Desmantelo Azul


Então, pintei de azul os meus sapatos

por não poder de azul pintar as ruas,

depois, vesti meus gestos insensatos

e colori as minhas mãos e as tuas,


Para extinguir em nós o azul ausente

e aprisionar no azul as coisas gratas,

enfim, nós derramamos simplesmente

azul sobre os vestidos e as gravatas.


E afogados em nós, nem nos lembramos

que no excesso que havia em nosso espaço

pudesse haver de azul também cansaço.


E perdidos de azul nos contemplamos

e vimos que entre nós nascia um sul

vertiginosamente azul. Azul.


Carlos Pena Filho

Nublante


(era 2005, e eu escrevi assim.)


o Barão me dizia que nossa música nunca mais tocou,
e eu mudei de estação pra encontrá-la inteira em letra&melodia no último dial,
trazendo um gosto amargo na língua molhada de mágoa
- ah, esses amores...
vão-se janela abaixo
de escada, elevando a dor no maior tom,
correndo de costas baixas e coração embriagado com a liberdade solta na alma esgotada
pelas noites&dias cravados no calendário da cozinha,
pelo corredor escuro e parado entre paredes que restaram da demolição das palavras
malditas e mal ditas, tolas palavras,
que nem se sabe o significado... acúleos citados de poeta meio bruxo
ferindo o peito do náufrago que isolado no mar escuro&revolto, atrela-se
à lanterna dos afogados
e segue, quando em terra firme, a luz no fim do túnel estranho que se abre aqui
e vai dar numa cidade tão grande
que se não me perder por lá
será num certo olhar de promessa vaga, que me verei a sentir falta de bússola
...


(quem tirou o último tijolo do muro onde a gente se sentou esses anos todos?)


- ah, esses amores...
fugindo, rugindo maldições e pragas tantas
que até se agradece que os santos de pau oco eram anteriores a esta lenda de querer, e vão ficar
no seu cantinho de sempre, protegendo coração&corpo que ainda quer&precisa ser feliz.
levando roupas, discos, despertador, caneta de tinta invisível, fotografias de nada, metades de tudo que se pensava inteiro
(a cabeça do peixe ficou no aquário vazio)
o corpo sereia e a água toda que nascia dos meus olhos
você levou na mochila
onde nunca caberia a história verdadeira
deste nosso fracasso,
mas que guardou por inteiro
a grande mentira
que foi pensar que a gente se amou um dia.

albanegromonte

Hera, Era


Era uma hera, mas parecia gente. Uma mulher, pregada nas paredes da mansão bonita dos Jardins... Diziam as outras plantas com despeito, que ela pensava que tinha sido enfeitiçada por uma bruxa, que era uma princesa e se transformara naquele monte de folhas disformes. Mas não era verdade... a verdade é que ela era uma mulher até os 30 anos e um dia desejou, num momento de profunda tristeza, ser uma planta. Pronto, um duende que andava por ali, levou a sério e a transformou. Acordou verde, sem as formas arredondadas e colada num muro em qualquer lugar. As outras plantas a olharam com desconfiança... ela continuava linda... das folhas superiores saíam duas esferas azuis que pareciam pedaços de céu (resquícios dos seus); do meio de tudo, duas protuberâncias duras e tesas simulavam seios por demais acariciados; e a barriga reta, mal conseguia colar no muro; não falei nem das pernas, era incrível: uma hera que se dividia na parte inferior em duas longas hastes verdes. Havia ainda o traseiro polpudo que sobressaía quase tanto quanto os olhos. Mas a hera era infeliz... apaixonara-se pelo dono da casa e não sabia como se largar dali para dizer-lhe o quanto o desejava, há quanto tempo não tinha um homem...
E um dia... sempre há um dia nestas histórias, o dono da casa enjoou das plantas que enfeitavam o muro. Contratou os homens da Prefeitura e pediu, não, ordenou: Corta! "Até esta hera com jeito de mulher?" Principalmente, vivo tendo pesadelos com ela..." E aí, os homens começaram a cortar com suas máquinas, uma a uma das plantas que gemiam e choravam, mas ninguém entende língua de planta... Chegou a vez da Hera... quando a máquina ceifou suas pernas, o sangue de gente fluiu para todo lado. Os homens se assustaram mas continuaram o serviço. A hera se retorcia, sofria as dores da mutilação e principalmente o desprezo do seu amado. E assim, numa poça de sangue, viu-se a hera destroçada. Inteiros apenas os olhos azuis. Capricho do duende.


albanegromonte

O Poema






Um poema como um gole dágua bebido no escuro.

Como um pobre animal palpitando ferido.

Como pequenina moeda de prata perdida para sempre

[na floresta noturna.

Um poema sem outra angústia que a sua misteriosa

[condição de poema.

Triste.

Solitário.

Único.

Ferido de mortal beleza.


Mário Quintana in Aprendiz de Feiticeiro